Uma equipa canónica
A Espanha de De la Fuente só não nos transporta para os primórdios da TV a cores porque não convoca o Naranjito. Mas é uma equipa clássica, que segue à risca princípios básicos e lhes junta talento.
Celebrámos a surpresa dentro do jogo alemão logo na abertura e, ao segundo dia, resta-nos aplaudir uma Espanha em que tudo aparece onde tem de aparecer e na qual toda a gente faz o que tem de fazer. Na equipa de Luís de la Fuente não há cá enganos ou prestidigitações: os extremos dão largura, fintam e cruzam, o ponta-de-lança busca a área e a profundidade, os médios interiores ligam por dentro e surgem em zonas de finalização, o médio-centro é a âncora de estabilidade ao meio, os defesas laterais fecham e marcam e os centrais apertam, desarmam e empurram com bola. Para parecer que fomos levados na máquina do tempo para aquele período em que o futebol ainda acolhia a TV a cores como novidade só faltou aparecer o Naranjito, a mascote do Mundial’82, ou o Manolo do bombo perder metade do perímetro abdominal que entretanto adquiriu. A vitória clara (3-0) da Espanha ante uma Croácia que repetiu até o onze que há uma semana tinha ganho a Portugal no Jamor (2-1) baseou-se muito nessa forma canónica de fazer as coisas desde o primeiro momento, o momento de pressão, que os espanhóis exerceram com a recuperação das referências individuais. Yamal e Nico Williams mordiam os calcanhares aos laterais, impedindo-os de receber e ligar, Carvajal e Cucurella seguiam as movimentações dos extremos, mesmo quando estes baixavam para se disponibilizar em início de construção, e Morata ajudava Pedri, Rodri e Ruiz a fechar o corredor central, sem nunca perder a conexão normal, as distâncias relativas do 4x4x2 defensivo que o treinador desenhara para se sobrepor ao 4x3x3 que a equipa adotava com bola – e há-de tê-lo feito na ardósia, a giz, ou no máximo num quadro branco, a marcador colorido, que isso dos tablets é uma modernice que ali ainda não se estimula. No final, olha-se para os números e é possível que se conclua que os espanhóis foram bafejados pela deusa da eficácia, pois fizeram menos remates (11-16), tiveram um xG total inferior (1,9-2,5) e até, o que é novidade absoluta para os últimos anos, menos bola (47 contra 53 por cento). E é aqui que está o cerne da coisa. Porque é que a Espanha teve menos bola? Porque esteve em vantagem desde cedo e teve de suportar a tentativa croata de recuperação? Sim, em parte. Mas foi sobretudo porque, lá está, dispersou as unidades pelos sítios onde elas faziam sentido em vez de as juntar todas à volta da fogueira da posse pela posse. E, ao fazê-lo, não só ganhou na mesma como nem por um instante deixou que no estádio pairasse a ideia de que poderia perder, tal era a sensação de superioridade que ao longo dos minutos foi fazendo passar do momento inicial de pressão aos períodos em que tinha a bola. Neles, Pedri e, sobretudo, Fabián Ruiz iam completando triangulações ou Yamal olhava para Gvardiol do alto do descaramento que lhe conferia o título de jogador mais jovem da história de uma fase final e achava que reencarnara Garrincha, pela forma como lhe punha a bola à frente do pé direito e depois do esquerdo e depois do direito outra vez, antes de sair por um dos lados. A Alemanha entrou bem no Europeu, é verdade, mas a Espanha fê-lo com um adversário. É que do outro lado estava a Croácia. E isso também conta para a análise.
Do susto, ao controlo, ao susto... Os adeptos que viam pela TV, em casa, ainda discutiam que queijo ralavam para a massa, se um parmiggiano ou um pecorino romano, e a Albânia já tinha marcado. Logo no primeiro minuto, Bajrami fez o golo mais rápido da história dos Europeus, recuperando um lançamento lateral tonto de Di Marco já na área de Donnarumma, e pondo-lhe a bola por cima, mas a resposta italiana foi brutal. A ganhar – e nunca saberemos se o faria na mesma se o resultado estivesse nos 0-0 –, Sylvinho ligou as sirenes de emergência que vão acionar a linha de seis atrás e pediu aos extremos do 4x2x3x1 que baixassem para defender por fora dos laterais, de forma permanente Seferi à esquerda e de um modo alternado Asani na direita, o que o fez perder as referências, tantas eram as suas derivações entre a primeira e a última linha. O afundamento do bloco albanês pela sua área adentro, empurrado para trás pelo receio do treinador mas também por uma exibição personalizada em condução do jovem Calafiori, que fez crescer a Itália, levou à virada repentina. Um cabeceamento de Bastoni num canto e uma ressaca de Barella, da entrada da área, valeram dois golos em 15 minutos a uma azzurra que bem podia ter depois ampliado a margem, montada numa assimetria criada um pouco no mesmo molde da de Portugal: Chiesa faz à direita a abertura da linha da frente que Leão faz à esquerda na equipa de Martínez, Di Marco é o lateral que completa à esquerda a linha de cinco atacantes que os portugueses acabam de preencher na direita com a largura e profundidade do seu lateral. A verdade é que o jogo se foi arrastando, o 2-1 ficou como que gravado na rocha, a Albânia foi perdendo gradualmente o pânico que a mandava encolher-se, Spalletti relaxou, piorou a equipa com as substituições, Sylvinho guardou a sirene e chamou atacantes novos, que proibiu de se esconderem atrás. E foi a anca direita de Donnarumma que, já nos descontos, deu uma sacudidela num remate de Manaj que prometia o empate surpresa à Albânia. Era justo? Não. Era merecido? Talvez, que a Itália tem de jogar mais do que se viu em Dortmund.
O passado como uma coxa elástica. Não estava à espera de uma Suíça tão forte nem de uma Hungria tão fraca como as que se viram na primeira parte do jogo que abriu o dia de ontem. Ao intervalo de um recital de Xhaka, deixado tão à vontade como Kroos na véspera, 2-0 para os suíços, sendo que Szoboszlai, Sallai e Kerkez nem tinham aparecido para ver e bater palmas, quanto mais para jogar. A segunda parte foi diferente, os húngaros reclamaram protagonismo no golo de Varga – que um par de minutos antes perdera uma ocasião ainda mais fácil de reduzir – e, à medida que Szoboszlai ia encontrando espaço para desequilibrar na esquerda, começava a admitir-se que o jogo afinal ainda não estivesse fechado. Até que do banco saiu Embolo, aquela montanha de músculos que a Suíça perdeu no último ano e meio para duas lesões graves e que só tinha feito dois jogos como titular do AS Mónaco esta época antes de ser convocado por Murat Yakin para o Europeu. Foi o avançado nascido nos Camarões – que marcara ao seu país natal o primeiro golo da Suíça no Mundial do Qatar – que arrumou a questão. Entre o domínio da bola e o remate vitorioso caiu-lhe por baixo, pelo mesmo pé direito com que bateu Gulácsi, uma coxa elástica que aparentemente já lhe estava larga. Não lhe servia e ficou pelo caminho como o passado, como as lesões cujo afastamento pode tornar a Suíça bem mais forte do que numa qualificação em que ele não chegou a jogar um minuto.
Entrelinhas
‘Just a boy from Birmingham’ – but global superstar already, é uma viagem às origens de Jude Bellingham e ao seu círculo em Madrid, feita por Jason Burt, no Sunday Telegraph.
Thuram, le rassemblement international, conta a história das convicções que levaram Marcus Thuram a manifestar-se, em pleno Europeu, contra o crescimento da intolerância política. Quem escreve é Hugo Delom, no L’Équipe.
La paradoja de Países Bajos: 16 futbolistas hijos de la inmigración entre el auge de la xenofobia, artigo de Miguel A. Herguedas, no El Mundo, sobre as origens multiculturais da equipa neerlandesa.
Southgate, un héros shakesperian, artigo de Pierre-Étienne Minonzio sobre a liderança do selecionador inglês, que vai para o oitavo torneio da sua vida (quarto como treinador), no L’Équipe.
How Rangnick earned Austria’s respect and set a country dreaming, artigo de Andreas Hagenauer no The Observer, acerca do crescimento da seleção austríaca debaixo do comando do antigo treinador interino do Manchester United.
Dovbyk’s rough road from unlucky nomad to La Liga’s most fearsome finisher, é um perfil do ponta-de-lança ucraniano assinado por Nick Ames, no The Observer.
Cuando los nazis utilizaron el fútbol como arma de manipulación masiva, artigo de Elena Sevillano, no El País, sobre o aproveitamento político do desporto por parte do III Reich.
Com fe se llega a todas partes, crónica de Manuel Jabois, no El País, com uma visão alternativa da vitória da Espanha sobre a Croácia.
How much life is left in Croatia’s classy but creaking midfield, análise de Tim Spiers à quebra de rendimento do meio-campo da Croácia no jogo com a Espanha.
Azzurri, che carattere. Scamacca si sblocchi. E servirà più pressing, análise de Arrigo Sacchi à vitória da Itália sobre a Albânia, na Gazzetta dello Sport.