Uma organização desorganizada
As dinâmicas do ensaio para o Mundial mostraram uma seleção livre de amarras táticas, com constantes trocas posicionais entre médios. Falta perceber como isto funciona com adversários mais fortes.
Portugal fez um excelente ensaio geral para o Mundial, batendo a Nigéria por 4-0, com uma primeira parte mais virada para o permanente desequilíbrio ofensivo e um segundo tempo menos bem conseguido, na tentativa de controlar o jogo – e a vantagem – com bola, baixando o ritmo e a intensidade, mas perdendo agressividade atacante e, sobretudo, uma organização desorganizada que tornou a equipa tão difícil de contrariar até ao intervalo. Até porque se anteveem algumas alterações no onze para o jogo de estreia, contra o Gana, na semana que vem, o que mais importava ontem era perceber as ideias e as dinâmicas – e a apreciação da globalidade do desafio deixou boas sensações e algumas certezas. Se soltar amarras e assumir a imprevisibilidade que mostrou ontem, a equipa de Portugal vai ser extremamente difícil de contrariar ofensivamente, mas para ser competitiva precisa de melhorar muito os momentos de transição defensiva. E isto passará até pela consciencialização dos cinco homens da frente de que é para jogar a mil, mesmo que essa entrega permanente a ações de pressão os leve a ter de rodar com frequência e a assumir que para eles os jogos não terão 90 minutos mas sim uns 60 ou 70.
Isto é dos livros e extremamente fácil de entender: quanto mais uma equipa se desorganiza no ataque para criar desequilíbrios, mais desorganizada se apresentará no momento da perda da bola. Logo, mais dificuldades terá para impedir o adversário de progredir. Ontem, Portugal apresentou-se com William nas funções de homem-âncora do meio-campo, distribuindo os cinco jogadores à frente dele de uma forma anárquica. Na tal organização desorganizada. Bernardo Silva começou por assumir responsabilidades de construção, aparecendo bastantes vezes ao lado de William e até entre os centrais em início de construção, mas à medida que o jogo avançou passou a surgir mais como dez, próximo de André Silva. Otávio, que abriu na meia-esquerda, naquele que podia ser um losango de meio-campo, baixou com o decurso da partida para a posição mais próxima de William. Bruno Fernandes começou na meia-direita, um lugar de maior responsabilidade, até porque o ataque português abria mais João Félix no lado esquerdo do que André Silva no direito, mas com o normal decorrer das ações ofensivas aparecia frequentemente no lado oposto. João Félix era, no papel, uma espécie de extremo-esquerdo, mas aparecia também muito por dentro, por vezes convidando André Silva, um ponta-de-lança mais dado a jogar de costas para a baliza do que será Cristiano Ronaldo, a sair para a direita.
Qual foi o sistema tático da seleção nacional? Os jornais de hoje divergem. Houve momentos em que foi 4x4x2 losango, ainda que com um dos atacantes aberto na esquerda. Houve momentos em que foi 4x3x3. E houve momentos, sobretudo na segunda parte, em que se viu mais estabilização no 4x2x3x1. Ora isto pode ser o sonho molhado dos adeptos da liberdade criativa e a verdade é que, a julgar pelo resultado, até correu bem. Aliás, mesmo em termos de exibição, correu bem melhor durante a primeira parte, o auge da anarquia criativa, do que na segunda, quando a equipa se organizou mais, com Otávio perto de William, Vitinha à frente desta dupla e João Mário bem mais fixo na direita do que tinha sido Bruno Fernandes nos 45 minutos iniciais. Mas por um lado essas diferenças também terão tido muito que ver com a ideia que a equipa levou para o campo: na primeira parte era agredir ofensivamente, mas na segunda era controlar o jogo com bola, baixar-lhe os ritmos, para testar a sua capacidade de gerir vantagens. E, por outro lado, mesmo a primeira parte deixou algumas dúvidas acerca da capacidade defensiva de uma equipa que se apresentava frequentemente desorganizada no momento da perda. Nesse aspeto, o lado direito foi sempre um problema, um permanente convite às progressões de Bassey e Simon. E isto, contra equipas mais certeiras na definição, poderá ser fatal.
O que fazer? Pedir a Bruno Fernandes que fique mais lá? Mas isso reduzirá a imprevisibilidade ofensiva da equipa. Pedir ao médio-centro que feche mais aquele lado? Ora também isso virá disciplinar a anarquia ofensiva, porque prenderá mais o segundo médio ao corredor central. Se as coisas continuarem assim, João Cancelo poderá ter pela frente um desafio da dimensão do que foi enfrentado por Fábio Coentrão no Mundial de 2014, o último que Portugal abordou com Cristiano Ronaldo a partir da esquerda do ataque – em momento de transição defensiva apanhava sempre com dois ou três homens pela frente, porque Cristiano saía dali e nem era do interesse da seleção tê-lo lá amarrado. A resposta a este problema dependerá de muita coisa, a começar pela forma como as coisas funcionarem com jogadores que ontem estiveram de fora mas que até poderão surgir no onze contra o Gana, como Rafael Leão ou Cristiano Ronaldo. Se o primeiro é mais explosivo e veloz mas menos subtil e criativo do que João Félix, mais dinamite e menos filigrana, o segundo é mais móvel, mas menos ponto de apoio frontal para os médios do que André Silva. E, depois, dependerá ainda mais daquilo para que eu fui chamando a atenção durante os comentários em direto, na RTP1, e que o próprio Fernando Santos apontou publicamente, na flash-interview, como principal ponto a melhorar: a reação à perda.
Para jogar com esta organização desorganizada, Portugal tem de ser uma equipa muito mais forte nos primeiros momentos de pressão, tem de ser hiper-intenso na reação à perda, tem de asfixiar naqueles cinco, seis segundos que separam a transição ofensiva do adversário de um contra-ataque ou de uma perda de bola. Mas isso depois não vai desgastar os jogadores da frente, impedindo-os de estar tão frescos e lúcidos para criar? Vai, claro. Mas felizmente há no plantel profundidade suficiente para todos poderem ser substituídos durante os jogos sem grande perda de qualidade. Nestas circunstâncias, é preferível fazerem 60 minutos a 200 à hora do que pedir-lhes que façam 90 em poupança de esforços. Ao Qatar vão 26 jogadores. Em cada jogo podem alinhar 16. É aproveitar.
Ontem, pode ter-lhe escapado:
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