Um jogo definidor em Barcelona
Este FC Barcelona "não é o Cascalheira", mas ainda não melhorou assim tanto. O jogo de hoje é definidor para os catalães, mas também para o Benfica, que tem de recusar o comodismo para se afirmar.
Jorge Jesus fez há dias o favor de nos lembrar a todos que o Benfica vai discutir uma vaga nos oitavos de final da Liga dos Campeões com o FC Barcelona. “Não é com o Cascalheira”, juntou. Mas ontem, quando lhe recordaram que há nove anos levou o Benfica a empatar (0-0) a Camp Nou, desvalorizou com uma modéstia que nele é rara: “Foi um jogo diferente. O FC Barcelona já estava apurado e o Messi só entrou a 25 minutos do fim [na verdade foi a 32’]”. Pois bem, a boa notícia é que hoje Messi não entra. A má é que este FC Barcelona está melhor do que quando apanhou 3-0 do Benfica na Luz. Outra boa é que, sendo indiscutível que está melhor, ainda não está assim tão melhor, que estas coisas levam o seu tempo. O jogo de hoje vai ser um daqueles momentos definidores, em que as duas equipas são encostadas à parede. E é nestes momentos que se vê o que valem os grupos.
A tentação normal é a de associar o regresso de Xavi Hernández a Barcelona a uma readoção da ortodoxia “culé”, do primado da bola sobre todas as coisas. O treinador, ainda por cima, colabora na narrativa. Ontem, aproveitou uma pergunta que era uma autêntica assistência para golo, daquelas que só lhe pedem que encoste sobre a linha, para dizer que para jogar numa equipa dele “não é preciso medir dois metros nem pesar 85 quilos”. É uma frase para estampar em t-shirts, uma espécie de máxima de autoajuda para treinadores com aspirações a poetas, mas pouco mais. Se o jogo de estreia deste novo Barça, no sábado, contra o Espanyol (1-0), trouxe novidades, elas foram todas no comportamento da equipa sem bola. Mudou a forma como os dois médios mais avançados no 4x3x3 chegam com mais frequência à área rival, mudou a zona de pressão, que agora é feita mais à frente e com mais vigor. E mudou sobretudo o ambiente, que à conta das tais máximas de autoajuda sempre vai ficando mais respirável e permite aos jogadores encararem de forma diferente a tal pressão coletiva e a reação à perda.
O primado da bola, no entanto, já o Barça costumava tê-lo. Teve-o, por exemplo, nas últimas quatro derrotas debaixo das ordens de Koeman, entre as quais estão os 3-0 da Luz, com 59% de posse. O que sempre lhe faltou para ser igual a si mesmo foi acreditar naquilo que estava a fazer. Agora, tem caminho aberto para começar a crer e tem pela frente um Benfica que, nos 41% do tempo em que teve a bola nesse jogo da Luz, expôs de forma flagrante todas as fragilidades defensivas da equipa catalã. É por isso que o jogo de hoje é tão importante. Para o FC Barcelona, porque separa o clube de um fracasso histórico – ficar na fase de grupos da Liga dos Campeões. Para o Benfica porque é uma hipótese de dar o passo que falta a esta equipa para reclamar estatuto europeu. O maior obstáculo do Benfica hoje pode nem ser o FC Barcelona – e atenção que esta equipa do Barça vai melhorar, mesmo que não consiga fazê-lo já a partir de hoje. O maior obstáculo do Benfica hoje é a noção limitadora mas muito confortável de que não tem a obrigação de obter um resultado.
Quando Jesus nos lembra a todos que o FC Barcelona “não é o Cascalheira” ou que “90 por cento dos analistas achavam que eram o Bayern e o Barça que iam passar” – e ainda gostava que me apresentassem os outros 10 por cento... – está ao mesmo tempo a expressar aquilo que é uma evidência e a abrir uma escapatória de que a sua equipa não só não precisa como pode até ser-lhe nociva. Na verdade, não pode ser colocado no Benfica o carimbo do fracasso se acabar por não se qualificar neste grupo, onde estavam dois colossos. Contudo, também os encarnados terão hoje um desafio definidor do que querem e podem ser como equipa. E, mesmo que acabem por soçobrar, têm de deixar no campo a ideia de que foram para ganhar, de que não se vergaram nem ao comodismo, de que são feitos do que se fazem os melhores. E isso, seja contra o FC Barcelona ou contra o Cascalheira, seja na Liga dos Campeões, na Liga Europa ou até nas competições nacionais, vai definir o que vai ser o resto desta época para o Benfica.
É que este Benfica, tal como o FC Barcelona, também precisa de acreditar, de ter algo em que suportar a sua ortodoxia futebolística. E ainda que a vitória sobre os catalães na Luz tenha sido seguida de um período de crise – uma vitória, três empates e três derrotas nos sete jogos a seguir – não há nada como um confronto com um gigante à procura da sua identidade para conseguir essa injeção de fé.