Trampolim ou suporte de vida
O Boavista parecia ter condições para, com investimento, voltar a ombrear com os grandes. A entrada de Gérard Lopez fez sonhar. Mas o clube continua como que ligado às máquinas de suporte de vida.
Os grandes investidores estrangeiros são uma espécie de Dom Sebastião para os adeptos do futebol português. Há por aí quem acorde todos os dias na esperança de os ver surgir detrás de uma cortina de nevoeiro para levantar o clube do seu coração a patamares nunca antes atingidos, mas também há quem fuja deles com medo de que possam arrastar esse mesmo clube para um qualquer Alcácer-Quibir. O hispano-luxemburguês Gérard Lopez tem a carga mítica de ter andado na Fórmula 1, com a Lotus, e de ter trabalhado com Luís Campos na construção do Lille OSC que depois ganhou a Liga Francesa ao Paris Saint-Germain, mas os efeitos da sua entrada como acionista maioritário no capital da SAD do Boavista estão a tardar tanto como a OPA a que já foi “forçado” pela CMVM e que quase um ano depois ainda não passou de um tímido anúncio preliminar.
Todo este raciocínio parte de um engano. É que os grandes investidores, aqueles que enchem o imaginário de quem lê meia dúzia de notícias sobre as Cinco Grandes Ligas, não querem vir para Portugal, porque aqui não há retorno – nem financeiro nem em capital-simpatia, uma vez que os únicos clubes com verdadeira presença internacional não estão à venda. Quem nos sobra são aqueles investidores que não têm assim tanto dinheiro, que não são o estado do Qatar, o fundo soberano da Arábia Saudita ou o emirado do Abu Dhabi, e que descobrem nos clubes da nossa Liga uma chance relativamente barata de entrar nas provas da UEFA e estabelecer uma placa giratória para compra e venda de jogadores ou, em alternativa, de fixar uma base inferior para alimentar clubes que já lhes pertencem e que têm mais visibilidade. A entrada de Lopez no Boavista sempre me pareceu enquadrar-se nesta última categoria, mas a despromoção dos Girondins de Bordéus, o outro clube presentemente no portefólio do antigo dono da Lotus, fez com que a minha expectativa fosse a de que o Boavista pudesse vir a escalar um lugar na hierarquia do proprietário e voltasse finalmente a assumir o estatuto de clube capaz de ombrear com os grandes. Já percebemos todos que não vai acontecer. E talvez até nem seja tanto porque ele não quer, mas sobretudo porque ele não pode – foi o que se depreendeu do que foi dito ontem, por ocasião do jogo de apresentação do Boavista aos seus sócios.
Diz Vítor Murta, o presidente da SAD axadrezada, que sem Lopez o Boavista provavelmente “nem poderia estar a competir nos escalões profissionais”. Depreende-se, portanto, que a inibição de inscrição dos reforços contratados esta época a tempo de alinharem na primeira jornada da Liga, neste fim-de-semana, já mais ou menos assumida, será um contratempo menor e desdramatizável. Mas confunde-me na mesma como foi possível chegar a este ponto. É verdade que o clube terá vivido largos anos acima das suas possibilidades, durante os quais se sagrou campeão nacional, de resto, ainda debaixo da influência da dinastia Loureiro. Que terá tido de pagar isso e que a queda por cinco anos na II Divisão B – depois Campeonato Nacional de seniores – não terá ajudado em nada ao nível da receita, direta ou indireta. Mas a reintegração administrativa na Liga principal já aconteceu em 2014. Desde então, o Boavista jogou oito campeonatos, nos quais revelou jogadores como Ellis, Sauer, Musa, Helton Leite ou Porozo, já transferidos, quase sempre por valores demasiado modestos, mas também Pérez ou Makouta, que ainda fazem parte do plantel às ordens de Petit e que, com Cannon, Nathan, Hamache ou Gorré, podem formar uma equipa engraçada e à imagem do treinador, uma espécie de “Jaime Pacheco 2.0”.
Não é pelo scouting ou pelos jogadores ou treinadores que o Boavista está nas dificuldades em que se encontra, portanto. E não é seguramente por falta de adeptos. O clube manteve a sua fiel massa associativa ligada, andando sempre neste oito anos entre o sétimo e o quinto lugar no que toca à média de assistência no estádio e tendo até recentemente suplantado de forma consolidada o Marítimo para ser sexto, apenas atrás dos três gigantes nacionais e dos dois grandes do Minho. Portanto, se é legítimo que entre os adeptos portugueses se olhe para os investidores estrangeiros com dúvidas, nunca se sabendo se vem de lá um criminoso que só quer lavar dinheiro e que depois de ir embora leva à extinção do clube por causa de dívidas, ou uma estrutura profissional capaz de o elevar verdadeiramente, as condições do Boavista sempre pareceram o sonho de qualquer investidor que queira entrar aqui: está num grande centro urbano, tem adeptos, boas infra-estruturas, gente dedicada... Vítor Murta afirmou ontem que o clube não enjeitaria a possibilidade de jogar uma Liga Europa, mas antes disso é preciso percebermos todos que condições tem Lopez, quais são as prioridades dele e o que é ele para o Boavista: um trampolim ou uma máquina de suporte de vida?
PS: A este respeito, recomendo a leitura de toda a série Donos da Bola – são doze fascículos, que pode descobrir a partir daqui – para ficar a conhecer melhor o tecido societário de 250 dos maiores clubes do Mundo.
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