Scouts, dirigentes e treinadores
Os olheiros descobrem os jogadores? Sim, até certo ponto. Mas depois são os treinadores que podem dar sentido à descoberta. Tudo a propósito de Gyökeres ou Darwin e de quem os potenciou.
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Jorge Jesus aproveitou a presença de jornalistas portugueses na Arábia Saudita, em mais um jogo da série de vitórias do seu Al Hilal, para elogiar o scouting do Sporting por ter descoberto Gyökeres, comparando mesmo essa operação à forma como, em 2020, a equipa de olheiros do Benfica foi desencantar Darwin Nuñez, mas perdeu uma chance de ouro para chamar a si próprio boa parte do mérito que indiscutivelmente lhe é devida. E não, não estou a dizer que foi Jesus que “descobriu” Darwin, que desconfio que quem ele queria era o Cavani, que até já tinha nome no mercado – e ele dá-se bem mesmo é com consagrados. É evidente que houve muita competência das equipas de scouting que recomendaram esses atacantes, que jogavam nas divisões secundárias de Inglaterra e de Espanha, no Coventry City e na UD Almeria. Mas convém que se entenda que em nenhum dos casos estamos a falar de puros desconhecidos. No mundo das plataformas estatísticas e de vídeo, no terreno fértil do WyScout, descobrir craques já é quase como jogar Football Manager. Medem-se carregadas progressivas, médias de finalizações, G-xG, dribles bem sucedidos e passes para remate, regularidade e índice de resistência à lesão, carrega-se em duas teclas para o programa reunir meia dúzia de clipes de vídeo e já está. Sim, é preciso ter visão e não, não estou a dizer que qualquer paralelepípedo com dois olhos e acesso à internet pode ser um bom scout, mas recuso-me cada vez mais a ver aí o verdadeiro toque de Midas para o sucesso neste futebol do século XXI. Conforme me foi dito por quem sabe da coisa, há pouco mais de um mês, quando escrevi sobre a Copinha, o torneio de futebol jovem que no início do século concentrava no estado de São Paulo centenas de olheiros de clubes europeus endinheirados, hoje em dia já só se justifica estar lá para acompanhar o entorno do jogador que se quer contratar e perceber a quem é que se tem mesmo de pagar para o fazer. Porque a tarefa de o descobrir está facilitada e o que depois separa os craques do entulho é o comportamento, o profissionalismo quando se atinge o mais alto nível e, acima de tudo, o encaixe nas ideias do treinador que terá por missão fazer render o craque. Gyökeres foi a maior descoberta do futebol português dos últimos tempos? Terá sido uma das maiores, mas eu não lhe chamaria descoberta. Quem o descobriu, na II Divisão sueca, foi Sam Jewell, olheiro do Brighton que recomendou a sua contratação em 2017. E no entanto ele não se afirmou e foi acumulando empréstimos até à cedência definitiva. Não terá certamente sido por ter má ética de trabalho, mas simplesmente porque as suas caraterísticas não eram o que imaginava – se é que ele imaginava alguma coisa... – o treinador da equipa, o irlandês Chris Hughton. A tarefa de “descobrir” um craque tornou-se ao mesmo tempo mais fácil pelas plataformas de estatística e de vídeo e mais complexa pelo aumento do nível de especificidade que implica – e é mais um argumento a favor daquilo que defendo, que é a predominância da opinião técnica nas contratações. Há jogadores bons e jogadores maus. E separar os primeiros dos segundos é a tarefa dos scouts, que além disso devem estar em condições de responder a perguntas acerca de caraterísticas específicas de cada um e de os recomendar ou desaconselhar em função disso. Mas entre a “descoberta” e a afirmação do craque há mais dois patamares a superar. O primeiro é uma avaliação de RH, uma espécie de teste psicológico de aptidão. Como se comportará aquele jogador assim que lhe elevarmos o nível de dificuldade e profissionalismo? Quais são os hábitos dele? E em que medida se refletem no seu índice lesional? E o segundo é o verdadeiramente decisivo. Assim que ele chegar, o que vamos fazer com ele? Como vamos explorar as suas valências e esconder as suas fraquezas? Estas respostas, salvo melhor opinião, só quem as pode ter é a pessoa responsável pelo plano de jogo. Sim, é o treinador.
Agir ou ficar à espera. É aqui que devemos fazer a nós mesmos duas perguntas. A primeira é em torno do papel de um treinador numa equipa. O que deve fazer o treinador? Deve dar os treinos, escolher os onzes, definir a tática, se se joga em 4x4x2 ou 4x3x3, com três centrais ou três médios, gerir as substituições e aparecer frente aos jornalistas para dizer que a equipa fez um bom jogo mas o adversário também tem o seu valor? Acho, francamente, redutor. A minudência a que chegou o futebol moderno leva-nos a ter de integrar tudo isto. O treinador deve dar os treinos de acordo com a ideia que tem para o jogo da equipa, criar exercícios que potenciem essa ideia e desenvolvê-la de forma a incrementar as virtudes dos seus jogadores e, na sua visão estratégica, explorar as fraquezas do adversário dessa semana. Se hoje entra um ala mais profundo de um lado e outro mais conservador do outro, se a primeira linha de pressão deve estar aqui ou ali, se deve inclinar para um lado ou para o outro, qual a distância a que deve ficar o resto da equipa, como reage em transição defensiva ou ofensiva... É aí que está a diferença entre sucesso e insucesso. Se fosse só chegar lá e dizer que joga o Francisco e não joga o Joaquim ou que se deve entrar em 3x4x3 e não em 4x4x2, desculpem lá, mas até eu servia. Com exceção de alguns momentos mais passivos, para acerto de posicionamentos, há pelo menos 20 ou 30 anos que os treinos deixaram de ser onze contra onze, titulares contra suplentes, a ver quem está melhor e pior. A generalidade das equipas não treina um minuto ao longo da época em onze contra onze no campo inteiro. Tudo se faz através de exercícios em espaço reduzido, de maneira a fazer sobressair detalhes individuais que possam ajudar o coletivo. E esses detalhes, que casam com a ideia de jogo, é que têm de estar presentes na decisão de contratar este jogador e não aquele. Ontem, no comentário à publicação de Facebook com o texto do Último Passe, um de vós escreveu algo como: “Se o Sporting vender o Gyökeres devia ir buscar o Banza”. Vamos deixar de parte a questão do preço, que estará naturalmente inflacionado para os dois jogadores, e centremo-nos apenas nas caraterísticas. O que é que os dois têm em comum? Três coisas. São bons jogadores, são pontas-de-lança e marcam muitos golos. E acaba aí. Porque depois, se se pensa na forma de jogar que uma equipa precisa de adotar para potenciar um ou o outro ou no que cada um pode aportar ao coletivo, eles já são radicalmente diferentes. O que nos leva à segunda pergunta: a quem deve pertencer a decisão de contratar? E aqui a resposta só pode ser uma: dentro do que está orçamentado, ao treinador. E digo-o por um par de razões. Porque, à partida, é ele quem mais sabe de futebol ali. E fundamentalmente porque é ele que vai decidir como vai utilizar este ou aquele jogador e que ideia de jogo ele permite desenvolver. É claro que a coisa pode vir a funcionar ao contrário – e no caso de Jesus com Darwin, aparentemente, funcionou. Isto é: o clube encontra um jogador, e depois outro, e depois outro ainda, e o treinador esforça-se para fazer as coisas baterem certo numa ideia coerente. Mas aí está-se a atrasar o processo, pois em vez de agir sobre a realidade, fica-se à espera que ela defina os seus contornos e depois tenta-se fazê-la funcionar.
O plano superior. E é aqui que aparece o argumento final: os treinadores passam e os clubes ficam. Que é como quem diz: mas que sentido faz ser um treinador que depois sai de um clube a escolher os jogadores que lá ficam depois de ele se ir embora e de aparecer outro com ideias diferentes? Para este argumento, tenho uma resposta, que pode ser novidade para alguns. É que os jogadores também saem dos clubes. E o segredo não passa por impingir a Amorim os jogadores escolhidos por Viana ou Varandas, por oferecer a Schmidt os selecionados por Brás ou Rui Costa, por dar a Conceição os recursos que Pinto da Costa e Luís Gonçalves acham que são os melhores. Passa pela estabilidade no comando técnico das equipas. Aos que defendem a existência de um plano superior em cada clube, que temem o vazio que se estabelecerá se os treinadores decidirem quem querem para a equipa e depois se forem embora, rebato que quando isso não acontece o que se vê mais é uma total inexistência de plano. É a contratação de jogadores que até podem fazer sentido se os quisermos a jogar para nós no jardim lá de casa, porque hão-de ser indiscutivelmente bons e ou já o provaram ou o provarão em breve noutro contexto, mas que ali, naquela equipa, idealizada por aquele homem, servirão de pouco ou nada. E isso não tem nada de superior.