Schmidt no mar alto
A primeira vitória de Schmidt, a construção de uma identidade em torno de um onze-base esticado ao limite, está obtida. Mas as caraterísticas desta "interrupção" levam-no também para o mar alto.
O futebol é uma coisa tão mais simples do que se quer fazer dele. E atenção que aqui não me refiro às complexidades táticas ou estratégicas, que existem, por muito que os simplistas queiram negá-las, ou às complexidades no discurso analítico, recusadas por quem demonstra preguiça de estudar e evoluir. Mas a simplicidade do futebol está bem à vista nas palavras de Roger Schmidt, em conversa com os meios oficiais do Benfica depois reproduzida por todos os jornais de hoje. “A abordagem é não nos escondermos quando defrontamos as grandes equipas. Bem pelo contrário”, disse Schmidt. E isto, mais do que revolucionário, é identitário. A força deste Benfica não está numa revolução, por muito que essa narrativa dê jeito a quem lhe quer impor um rótulo de rotura total com o passado recente. A rotura existe, sobretudo, no plano dos resultados, e nasce muito do facto de este Benfica saber quem é, ao que joga e não se esquecer disso em nenhuma circunstância. Mais: de o ter reforçado com uma primeira vitória sobre o pensamento moderno acerca da gestão física dos jogadores, apostando quase sempre nos mesmos, com base no conhecimento que o treinador tinha de épocas partidas ao meio, na Alemanha. Esta época, contudo, não está bem partida. E é aqui que Schmidt entrará também em mares nunca antes navegados.
Continuo a achar que seria extremamente interessante conversar com Schmidt acerca dos princípios de jogo deste Benfica num plano que extravase a aceleração de uma conferência de imprensa, necessariamente marcada pelos diretos e pela busca dos soundbytes que eles cada vez mais exigem de quem lá está, mas o que ressalta das palavras do treinador líder da Liga portuguesa é uma clara separação das águas entre identidade e contexto. O contexto é importante, sim senhores, mas é frequentemente sobrevalorizado. É Ronaldo que não rende porque no Manchester United não o respeitam. É Rafael Leão, que de acordo com o pai, só é o jogador que é por causa do pai que tem. A Schmidt não se lhe lê, em nenhum momento, a valorização do contexto ou do seu próprio papel. O tempo útil? “Não é assim tão claro que seja inferior ao das outras Ligas”. A arbitragem? “Acho que fazem um bom trabalho. Vi ótimas prestações dos árbitros na nossa Liga”. Diz isso porque está a ganhar? É possível. Mas com isso viverá bem o alemão. Enquanto puder dizer que está convencido de que a equipa reagirá bem à primeira derrota – “Essa não é a minha forma de pensar”, afirma – estará ele bem, porque é sinal de que ainda a não conheceu.
A grande vitória de Schmidt nesta primeira parte da temporada não foi no plano de jogo, da tática ou da estratégia. O alemão não inventou nada nem o Gegenpressing é um fenómeno jamais praticado pelos treinadores portugueses. A vitória de Schmidt foi conseguida sobre os céticos, grupo no qual me incluí, acerca da capacidade de puxar doze ou treze jogadores até ao limite. Acredito que no futebol de hoje a rotação é fundamental, tanto para não esticar demasiado aqueles de quem se depende mais como para manter motivados e rodados todos os outros, que em qualquer momento podem vir a ser necessários. Schmidt, porém, olhou para o calendário e planificou deitando ao lixo várias noções que são caras ao pensamento que se crê moderno.
O alemão tinha o conhecimento de épocas com interrupções como esta que agora chega, porque era o que se fazia na Alemanha quando ele jogava e quando ele começou a treinar. E por isso puxou até ao limite uma equipa-tipo, confiando no poder regenerador deste mês e meio de interrupção da Liga no plano físico e na capacidade conciliadora das vitórias para a harmonização de um balneário que não é nada igualitário – se os maus resultados resultariam sempre em mau ambiente, promovido por alguns dos que têm estado mais tempo de fora, com os sucessos o mais normal é estes acabarem por sentir uma espécie de gratidão por estarem a fazer parte de uma dinâmica vitoriosa para a qual nem sequer contribuíram assim tanto. Ser suplente neste Benfica é quase como ser colega de Maradona naquela jogada em que ele fintou toda a equipa inglesa e marcou golo, no Mundial de 1986 – como uma vez explicou Valdano, era só ficar a ver e agradecer. Ninguém tinha a lata ou sentia o desejo de gritar: “Passa a bola!”.
O próximo desafio ao Benfica, no entanto, passa pelas caraterísticas desta interrupção. Seis jogadores dos encarnados vão estar no Mundial, onde não só não lhes será permitido relaxar como correm o risco de sair da bolha de sucesso que os tem inflado ultimamente. E os outros, apesar da paragem do campeonato, terão a Taça da Liga, com jogos nos próximos dois fins-de-semana. Mesmo que despreze a prova, por razões estratégicas, e abdique dos mais utilizados que não vão estar nas seleções, Schmidt não poderá fazer o que nesta altura fazem os alemães. O quê? “Parando agora, podia dar-se descanso aos jogadores, porque os últimos meses foram muito exigentes. E haveria a possibilidade de se fazer uma nova pré-época, para preparar os jogadores para o resto da temporada”, explicou o treinador. Até aqui, num ano em que toda a gente tem estado a navegar por águas relativamente desconhecidas, Schmidt tinha umas luzes acerca do que o esperava. Daqui para a frente, também ele enfrentará mar alto. É por aí que recomeçará a análise à época, em Dezembro.