Ronaldo, a rotura e a seleção
Cristiano Ronaldo escolheu o dia de ontem para assumir a rotura com o Manchester United, confiando na capacidade para brilhar no Mundial para se impor ao mercado. E a seleção, como fica?
A entrevista de Cristiano Ronaldo a Piers Morgan, publicada no The Sun, pode ter sido motivada pela vontade de finalmente pôr tudo em pratos limpos, acabando com a paz podre que só se destinava a ganhar tempo de jogo com vista ao Mundial, por uma estratégia de rotura que leve o atacante português a assegurar já que não tem de voltar ao Manchester United, ganhando assim tempo para que o seu agente lhe encontre um clube onde recomeçar a carreira após o Mundial, ou apenas pela egomania de um craque que está a lidar mal com o declínio natural da idade. Todas as opiniões são válidas e o mais provável até é que na raiz esteja um pouco de cada uma destas razões. E se é fácil responder ao “porquê agora?”, mais difícil será decretar se isto terá efeitos na campanha de Portugal no Mundial. Tanto pode ser arrasador como a manobra de diversão ideal para que a equipa se concentre no seu futebol, deixando a comunicação social entretida com Ronaldo e os seus problemas. O passado recente na equipa nacional, contudo, não dá razões para excesso de otimismo acerca da capacidade de isolamento desta questão por parte de um grupo que ainda vive em demasia os dramas do seu capitão.
Na dita entrevista, Ronaldo não deixou pedra sobre pedra. Diz que não tem respeito por Ten Hag, porque este também não o respeitou, que Ralf Rangnick, o antecessor do neerlandês, nem sequer é treinador, que há dirigentes que o querem fora do clube – como se ele próprio quisesse muito lá estar... – ou que nada ali evoluiu desde que ele saiu para o Real Madrid, há uma década. Nem o “chef” de cozinha. Ao contrário do que fez na seleção, por exemplo, após os Mundiais de 2010 e 2014, quando falhou os arranques das campanhas que se seguiram a duas fases finais frustrantes e com conflitos latentes entre ele e os treinadores, voltando só quando Carlos Queiroz foi substituído por Paulo Bento e, depois, quando este deu o lugar a Fernando Santos, agora Ronaldo assumiu o confronto. E isso tem duas consequências. Uma é que assegura que não haja clima para que ele fique em Manchester com Ten Hag. A outra é que impede que a corda quebre pelo lado do treinador, como aconteceu nas últimas duas trocas de selecionador nacional. Na altura, Ronaldo falou só depois: ao caminho do desgaste e às lesões de arranque de época sucederam-se elogios aos novos responsáveis por parte do regressado capitão assim que as chicotadas se consumaram.
Desta vez, Ronaldo não pode sequer ser acusado de estar a manobrar nos bastidores para minar o trabalho do neerlandês. Fê-lo às claras, tal como prometera aquando dos primeiros focos de conflito, ainda na pré-época. “Em breve, vou dar uma entrevista em que esclarecerei tudo”, disse. E fê-lo. Porquê agora e não há um mês, por exemplo quando se recusou a entrar em campo nos instantes finais da vitória contra o Tottenham, optando antes por recolher ao balneário e ir embora antes de o jogo acabar? Porque terá sentido que esse mês era decisivo para ele. Porque tinha de jogar para estar bem no Mundial e para isso precisava de alguma ilusão de tréguas no clube. Não que tivesse de o fazer para ser chamado – entre esse dia e a data da convocatória, Pepe, por exemplo, não jogou e está à mesma na lista, como ele estaria, desde que fisicamente apto. A questão é que Ronaldo terá sentido que para ter mais hipóteses de fazer um grande Mundial e dessa forma voltar a ter grandes clubes a bater-se por ele, precisava de ganhar ritmo. E aqui está à mostra aquela que é ao mesmo tempo uma das suas maiores armas e um dos seus maiores inconvenientes: o facto de ele se ter ainda na conta do jogador que superou os 50 golos por ano entre 2010 e 2016, quando na verdade já meteu mais seis anos em cima de um físico que, por mais trabalhado que seja, acusará sempre a idade. E isso, se o leva sempre a acreditar no sucesso, também lhe provoca uma ilusão acerca de capacidades que já lá não estão.
De pouco servirá agora estarmos a definir se a entrevista e o seu timing resultaram de uma estratégia fria e calculista de programação de carreira ou se ela contrariou os conselhos de quem gere a imagem de Ronaldo. No plano das relações-públicas, vê-se de tudo: quem o defendia na balbúrdia que foi esta primeira metade de época em Manchester já reforçou a sua posição, e defende-o ainda mais; quem achava que ele esteve mal nas atitudes que tomou, também o criticou com maior ferocidade. Isso, contudo, é mais ou menos irrelevante. A questão fundamental, aqui, é a dos efeitos que isto terá na seleção nacional durante o Mundial. Com esta entrevista, Ronaldo garantiu uma coisa. Que enquanto Portugal estiver no Qatar, todas as atenções da comunicação social internacional e até nacional irão num só sentido: como está o capitão? Onde é que ele vai jogar? Vai voltar a Manchester? Vai para os Estados Unidos? Pode voltar a Espanha? Ou a Itália? Está na altura de regressar a Portugal? Vai ser um circo. E isso, em si, não é um problema. Mais: isso, provavelmente, Fernando Santos até lhe agradece. Problemático é se não ficar bem definido dentro do grupo onde é que acabam os interesses pessoais do capitão, a necessidade que ele sentirá de brilhar, para vencer a batalha de egos com Ten Hag e justificar a cobiça de clubes de topo, e começam os interesses coletivos da seleção nacional. E até que ponto é que Santos sente que a sua legitimidade para comandar a equipa depende da realização dos desejos do capitão. No fundo, o sucesso da seleção dependerá de se perceber se, ao contrário do Manchester United, a Federação Portuguesa de Futebol evoluiu nestes dez anos.