Um caso de excesso e outro de defeito
A convocatória de Fernando Santos para o Mundial foi um reflexo quase exato das escolhas dos portugueses. Mas agora é que se coloca o desafio, na forma de um problema de excesso e outro de defeito.
Fernando Santos não se alargou em explicações acerca dos 26 jogadores que escolheu para representar Portugal no Mundial, respondendo a quase todas as perguntas que lhe foram feitas com generalidades, mas tal como se previa a convocatória foi relativamente consensual e não será dela que nascerão grandes polémicas. A questão fulcral a distinguir o sucesso do insucesso na equipa nacional terá muito mais que ver com o plano de jogo, bastante mais com o onze e com o futebol que a equipa apresentar no Qatar do que com os 26 que ontem foram revelados pelo selecionador. E aqui, além do eterno puzzle em torno do posicionamento de Ronaldo, há anos por resolver tanto nos clubes como na equipa nacional, há outro tema premente: como conjugar o excesso de talento criativo num só onze? Da resposta dada pelo selecionador dependerá o futebol de Portugal.
A quase unanimidade nacional em torno dos 26 escolhidos pelo engenheiro está bem à vista nos resultados da sondagem que lancei aos subscritores do meu Substack e aos espectadores do Futebol de Verdade. Em dia e meio tive 1200 respostas. E, além de ter elevado onze nomes acima dos 90 por cento – e mais oito acima dos 75 por cento – a escolha do público recaiu em 23 dos 26 selecionados pelo engenheiro. Duas exceções foram Anthony Lopes, que acabou 11 por cento à frente de José Sá na corrida ao provavelmente pouco importante posto de terceiro guarda-redes, e Renato Sanches, que acabou nove por cento à frente de William como médio, porque o jogador do Betis é, possivelmente até à frente de João Félix, quem tem a pior relação entre qualidade e apreciação do público em Portugal. A terceira exceção foi culpa minha, porque achava – e ainda acho – que falta neste grupo um avançado capaz de ir buscar a profundidade e, por isso, restringi a duas as escolhas de pontas-de-lança, de modo a poder incluir mais um jogador de corredor. O resultado foi que o público optou por Gonçalo Guedes, sacrificando Gonçalo Ramos, quando acabou por ser este o eleito por Santos, a juntar aos mais votados Cristiano Ronaldo e André Silva numa categoria em que eu só vos pedia dois eleitos.
Pode ver aqui as escolhas do público:
Já se vê que não serão estas três questões a provocar grande celeuma. Os pontos de discórdia em torno da convocatória também não têm tanto que ver com a chamada de António Silva, já relativamente consensual, apesar das poucas provas dadas e de despertar uma espécie de reação alérgica em quem não é do Benfica. Também não têm que ver com o facto de lá estar Otávio, culpado de insultos aos encarnados numa story de Instagram tão tonta que despertou o instinto xenófobo em alguns dos portugueses que torcem pelo vermelho e de repente se lembraram que ele nasceu no Brasil. Mas as votações em António Silva (65 por cento) e Otávio (77 por cento) extravasam em muito o plano clubístico e as contestações às suas chamadas acabam por ser incluídas no mesmo saco das que apontam para a ausência de jogadores do Sporting ou para a influência de Jorge Mendes na lista. Mendes é português e é um dos três agentes mais poderosos do Mundo. Estranho seria que ele não tivesse muita gente nesta lista. Quanto ao Sporting – e estou à vontade, porque na minha lista estava Gonçalo Inácio – até teve razões de queixa, sobretudo pelas ausências de Inácio e João Mário no Europeu que se jogou depois de terem sido peças importantes no título ganho pelos leões ou pela falta de jogo de Pedro Gonçalves na mesma altura, mas este é o ano em que de Alvalade não podem vir grandes questionamentos.
Aliás, a questão Pedro Gonçalves é a ideal para se lançar o tema verdadeiramente relevante. É que esta seleção pode ter, à partida, dois problemas – um de falta e outro de excesso. Pedro Gonçalves, que aprecio pela relação que tem com o golo, encaixa neste último tema, por ser um jogador que faria em campo muito o que já está reservado a Bernardo Silva, João Félix ou até Ricardo Horta, que lhe passou à frente mais pela resposta que deu na seleção do que pelo que ambos vêm fazendo no clube. Mas é aqui que se chega ao que será definidor no futebol da seleção. Como vai Portugal jogar? Resolver este enigma passa, primeiro, por resolver o tema da falta – falta um finalizador que esteja na área. Acho cada vez mais que Portugal teria a ganhar se Cristiano Ronaldo se remetesse a esse papel e deixasse de andar pelo campo em busca de participação em todas as fases de criação, numa omnipresença que até nascerá, possivelmente, da vontade de ajudar em termos coletivos – se ele estivesse só preocupado com os golos, ficava plantado na área – mas que acaba por ser prejudicial. E não é por falta de tempo de trabalho, que este é um tema que também não foi resolvido em condições pelos sucessivos treinadores que ele teve na Juventus e no Manchester United.
O que nos conduz ao tema do excesso – temos um excesso de criadores, que concorrem todos por posicionamentos no corredor central, com o risco de acabarem por se atropelar uns aos outros. Olho para os nomes e, quem sabe se por estar condicionado pelo facto de andar a gravar os episódios de O Mundial Vai ao BAR, onde passei em revista a história dos Mundiais, lembro-me da convivência tática de Falcão, Cerezo, Sócrates, Zico, Serginho e Éder no Brasil de 1982 – aviso aos indignados: não estou a comparar qualidades, só as caraterísticas. É possível encaixar no onze os talentos de Ronaldo, Leão, Bernardo, Bruno Fernandes e Vitinha, todos eles figuras de primeira grandeza em grandes clubes? Pode Portugal jogar com Vitinha a par de um médio-centro predominantemente construtor, como é Rúben Neves, alinhando depois com Bernardo e Bruno também mais por dentro, abrindo as alas a Cancelo e Nuno Mendes, e colocando Leão aberto ora num ora noutro flanco e prendendo Ronaldo a zonas de finalização? Com bola não vejo porque não. E sem bola? Esta constelação de estrelas dá as garantias suficientes no restabelecimento de equilíbrios e na capacidade de pressão? Foi por terem cedido aos pedidos do público que os Portugais de 1986 (contra Marrocos) e de 2002 (contra os Estados Unidos) fracassaram? Por mim, gostava de ver isto testado, mas não me esqueço que, apesar de tudo, o Brasil de 1982 também não ganhou nada.