Que equipa queremos ser
Muito do que está em causa na especulação em torno das escolhas que Martínez fará para o jogo de hoje, com a Dinamarca, tem como pano de fundo uma questão: que equipa quer a seleção nacional ser?

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Foi Roberto Martínez quem trouxe o tema para a agenda mediática – embora não nos seja possível adivinhar se poderia escapar a ele mesmo que quisesse. Quando fez a convocatória para a jornada dupla com a Dinamarca, dos quartos-de-final da Liga das Nações (hoje, 19h45, na RTP1), três dias depois do recital dado em Anfield Road pela dupla de médios portugueses formada por João Neves e Vitinha, com as camisolas do Paris Saint Germain, o selecionador nacional teria inevitavelmente de se referir ao tema. Falou logo de uma “química especial” já detetada em Junho de 2024, num particular da seleção contra a Finlândia, mas mesmo ontem não houve quem tivesse o descaramento de o confrontar com a constatação de que nos 13 jogos posteriores a esses primeiros passos tão promissores, a dupla só começou um pela seleção, que foi o último da fase de grupos desta Liga das Nações, já com tudo decidido. Ontem houve quem lhe perguntasse, contudo, se os dois iam começar a partida de hoje, no Parken. E é da resposta a essa pergunta que depende muito a tal definição da equipa que pretende ser esta seleção nacional.
Martínez não respondeu à pergunta, é evidente – o que nos transporta para a contradição jornalística entre a necessidade de ser concreto e não obter respostas ou de ser vago e manter uma conversa... Disse que Vitinha é “hoje, o melhor médio da Europa”, o que com ele na sala foi pelo menos algo constrangedor, e estabeleceu as diferenças entre o que são os ambientes dos clubes e o que é a seleção, voltando a dizer que jogar num lado e no outro não é a mesma coisa. A razão é simples de entender. É que cada clube tem a sua própria ideia – e a seleção há-de ter a sua também, mais difícil de construir, porque é constantemente interrompida, mas um objetivo a atingir. Ora é na definição desse objetivo que devem ser enquadradas algumas singularidades nas escolhas de Martínez, como a de ter visto logo uma química especial entre João Neves e Vitinha mas depois recusar-se a tê-los em campo em simultâneo. A propósito da ideia que tem para a equipa, lá está, o selecionador é vago. “Somos uma equipa que gosta de ter bola, controlar o jogo, mas tentar sempre ganhar”, disse ontem. E daqui vamos para onde? Haverá melhor dupla de médios para ter bola do que esta?
Na fase de grupos desta Liga das Nações, curiosamente, os dois jogos em que Portugal teve menos bola foram os desafios contra a Croácia: 50 por cento na Luz, com Vitinha e João Neves juntos durante a segunda parte, e 57 por cento em Split, o único jogo de competição em que os dois foram titulares e em que depois se mantiveram durante os 90 minutos. Nos jogos com a Polónia e a Escócia andámos entre os 63 e os 70 por cento de posse. Mas isso deveu-se a quê? Ao facto de os dois médios do PSG não estarem em campo ou – muito mais provável, digo eu – ao facto de o adversário mais forte e mais capaz de ter bola ter sido precisamente a Croácia? É que bola, em campo, só há uma. E se o adversário consegue tê-la, não a temos nós. O que nos transporta para outra questão: quanta bola podemos ter? E o que fazemos quando a não temos? Precisamos de um médio mais físico, como Palhinha, ou mais posicional, como Ruben Neves? Ou a falta de dimensão física do meio-campo pode ser contrariada com centrais mais fortes no contacto? Na minha maneira de ver as coisas, as equipas fazem-se de uma ideia, de uma filosofia de base, depois preenchida com complementaridades várias. Só que a minha ideia para o caso não interessa nada – a que importa é a de Martínez, que nos tem surpreendido com escolhas às vezes completamente fora da caixa, provavelmente por ver nelas as complementaridades que procura.
De que complementaridades falamos? Coisas simples como, logo a começar por trás, ter um defesa-central mais forte no ar e sem bola e outro mais capaz no capítulo do passe, para sair a jogar. Ter vias de saída asseguradas tanto pela direita como pela esquerda. Por exemplo, nos jogos em que alinhou com dois centrais destros, Martínez usou Nuno Mendes mais atrás, como que a fazer de terceiro central em momento de início de organização ofensiva, de forma a ter um pé esquerdo ali. Depois, sim, coloca-se a questão do meio-campo. Qual a maneira ideal de articular Bruno Fernandes e Bernardo Silva? Precisamos que um deles caia à direita? E se sim, qual dos dois? Ou podemos jogar com um quadrado a meio-campo, abandonando a largura a Rafael Leão, na esquerda, e a um lateral direito particularmente ofensivo – o que, sem Cancelo, fica mais difícil? E precisamos mesmo do lateral a jogar por dentro, se já temos este overload interior a surgir de forma natural e médios tão competentes na gestão do ritmo e da bola? Ou de alas vertiginosos dos dois lados, por exemplo com Leão e Pedro Neto (ou até Quenda)? As respostas a todas estas perguntas nos dirão que equipa quer ser esta seleção de Portugal. Porque é que não são feitas ao selecionador? Porque ele, evidentemente, não está na disposição de lhes responder oralmente e só o faz em campo, com as escolhas que faz para cada jogo.
Hoje, que o jogo é complicado, sem ter visto os treinos, eu iria com Diogo Costa na baliza, Diogo Dalot e Nuno Mendes como laterais, projetáveis em momento ofensivo, Ruben Dias e Gonçalo Inácio como centrais complementares – um mais físico no choque, outro mais forte no passe, um destro e outro canhoto. Depois, teria Vitinha, João Neves e Bruno Fernandes ao meio, deixando que este procurasse por vezes a meia-direita, em troca com Bernardo Silva. E fecharia o ataque com Leão aberto na esquerda, sempre em alternância com Mendes entre a linha e os meios-espaços, e Ronaldo na frente, partindo do princípio de que iria garantir meia-hora a Gonçalo Ramos a não ser que o jogo me dissesse o contrário. Se me perguntarem o que vai fazer Martínez, não faço ideia. Mas duvido que vá assim.
António Tadeia, tal como o ex árbitro Pedro Henriques, que aprecio ouvir na Rádio Observador, não embarca em vitórias antecipadas da «melhor selecção do mundo» de futebol, e faz muito bem. Mais do que propagandear vitórias antecipadas e troféus europeus e mundiais «que estão no papo», convém questionar os vendedores de sonhos e de ilusões, como o selecionador Martinez, e boa parte da torcida nacional. Por isso sou assinante tanto do Observador, e de António Tadeira, por acreditar que, apesar de tudo, ainda é possível contrariar a corrente das ideias feitas e das vitórias antecipadas e, no fim, morais.
O acanhamento do jornalistas nas conferências de imprensa do seleccionador nacional chega a ser chocante.