A vertigem do agrado
Há a realidade e depois há aquilo que nós gostaríamos que ela fosse. Quem anda na política pode tentar torcer a primeira para que ela se pareça com a segunda. Isso pode é não ser grande ideia.

Palavras: 1137. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Um dos problemas da humanidade é que todos tendemos a dar mais atenção àquilo que nos agrada ou, em alternativa, ao que nos irrita. A segunda versão desta teoria, a das bombas de dopamina, explica o sucesso de alguns dejetos que vamos deixando por aí, nas redes sociais. A primeira empurra-nos para a vertigem do agrado, para o positivismo tóxico que nos valha a aceitação. Foi o que me veio à mente a ler as entrevistas de Maurício Pochettino, selecionador norte-americano, ou de Nuno Catarino, administrador financeiro do Benfica, ambos vítimas desta propensão humana para o engano. Os agentes desportivos não têm de nos dizer sempre a verdade, quererão sobretudo levar-nos a navegar na maionese das perceções que sejam mais convenientes para o seu lado – e isso não é gravíssimo, se estivermos munidos da necessária vontade de descodificar o que eles dizem. Grave é, sim, que nos demitamos de o fazer.
Pochettino fez uma viagem relâmpago a Londres e deu entrevistas a vários jornais ingleses – li três, hoje, no voo de Lisboa para Copenhaga que levou ao atraso na hora de publicação deste Último Passe, ao The Times, ao The Guardian e ao Telegraph. Em todas vi uma preocupação comum: a pressão de Donald Trump. A cultura norte-americana é assim mesmo. “Os norte-americanos querem ganhar em todas as modalidades desportivas nas quais se envolvem”, explicou o treinador argentino com passagens por Tottenham e Paris Saint-Germain, que em Setembro substituiu Greg Berhalter à frente da equipa de um dos países organizadores do Campeonato do Mundo de 2026. Mas não saberão eles que no futebol ainda estão umas voltas à pista atrás dos mais fortes candidatos? Mais ou menos... O problema é que Gianni Infantino foi recebido por Donald Trump, a propósito da apresentação do Mundial de clubes deste Verão, e o novo presidente americano, principal ideólogo do movimento MAGA (Make America Great Again) perguntou-lhe se a sua seleção podia ganhar o Mundial. O presidente da FIFA fez então aquilo que toda a gente começa a fazer nas interações com o mais recente ocupante da Sala Oval: afagou-lhe o ego. “Claro que sim, com o apoio dos vossos adeptos”, disse Infantino, quem sabe se já a pensar na maneira de descalçar a bota que são as sanções à Rússia de Putin face à submissão do futebol-negócio à América de Trump, que terá a ser cargo os Mundiais de 2025 e 2026.
Pode ter sido por isso, por uma questão de realpolitik destinada a agregar simpatia. Talvez até tenha sido só para ser agradável de forma desinteressada. Vai-se a ver e Infantino até achou que quem estava do outro lado não o levaria a sério e encararia aquela afirmação como uma boutade, com o humor que ela evoca. Só que, diz Pochettino, não. A pressão vai fazer-se sentir. E já terá sido essa pressão a lançá-lo para uma tirada que ela própria pareceu sofrer de excesso de otimismo, a de que os Estados Unidos não podem pensar em ser a melhor equipa do Mundo senão “daqui a cinco ou dez anos”. Sem ter sido responsável pelo pontapé de saída da temática, Pochettino cavalgou a onda. E foi mais ou menos isso que teve de fazer o novo CFO do Benfica, Nuno Catarino, nas entrevistas que deu aos três jornais desportivos e à BTV. Falou de muita coisa, mas a mim interessou-me particularmente o que disse sobre a centralização dos direitos audiovisuais da Liga Portuguesa, que será forçosa em 2028, porque aproveitou a assistência de Pedro Proença para um remate ao ângulo – com a particularidade de o mais certo ser a baliza mexer-se daqui até ao momento em que a bola lá chegue. Disse Nuno Catarino duas coisas. A primeira é que, estando o atual contrato, que levou o operador a colocar os direitos dos jogos do Benfica em casa na BTV, a acabar – termina no final da próxima época –, o Benfica vai negociar em breve os dois anos que lhe falta vender até à obrigatoriedade de entrar no negócio conjunto. A segunda que não está sequer disponível para ouvir propostas abaixo daquilo que são os valores que o clube recebe no atual contrato.
É verdade que foi essa a promessa feita por Pedro Proença, que esteve sempre do lado certo desta luta – o da centralização –, mas que dourou sempre demasiado a pílula, negando aquilo que era já uma evidência no início do processo e que os mais recentes negócios feitos por essa Europa fora têm vindo a confirmar. Basta ver a confusão que está montada em França, com a mistura entre direitos de jogos e patrocínios, como forma única de fazer render valores já fechados em baixa, para se concluir que o futebol audiovisual está em recessão. Quando, sabendo que a distribuição dos direitos da Liga Portuguesa é a mais desigual de toda a Europa, se propôs a acabar com estas desigualdades, apontou aos 300 milhões de euros por ano e estipulou que nenhum clube iria ficar a receber menos do que hoje, Proença só tinha duas coisas. Vontade de meter o comboio em movimento e muita fé de que o futuro virasse para o lado contrário àquele que de facto virou. O que diz Catarino, agora, escudado na promessa do ex-presidente da Liga, entretanto eleito para líder da Federação, é que o Benfica até aceita o processo, aceita que outros venham a receber mais proporcionalmente do que recebem hoje, mas não aceita ficar a receber menos. Quer depois tenha os meios para tomar livremente essa decisão ou, como parece, porque a negociação conjunta foi imposta pelo poder executivo, não lhe seja possível ir além da inflamação das hostes.
Ante casos como estes, os protagonistas dizem o que entendem. Estimulam as perceções em que lhes dá mais jeito que venhamos a navegar. Os cidadãos ouvem e reagem. Os americanos deliram com a promessa de Pochettino e insultá-lo-ão quando virem que não, ele não vai ser campeão do Mundo daqui a pouco mais de um ano. Os benfiquistas indignam-se sequer com a sugestão de que podem vir a perder dinheiro com a centralização, como os outros depois se indignarão com os benfiquistas se estes fizerem pressão para saltar fora e contrariar o decreto lei aprovado pelo Governo em 2021. É por isso que ganha cada vez mais importância o papel dos “Gatekeepers”, dos jornalistas que têm a missão de ouvir, relatar e descodificar. Porque se a liberdade de expressão é cada um poder dizer o que entende, o progresso vem da nossa capacidade de entender e enquadrar o que todos dizem. Sem agrados nem revoltas.