Era preciso um super-herói
Diogo Costa pôs a capa de Super-Homem e voou para apanhar três penaltis depois de já ter vestido o maiô do Plastic Man para desviar, no chão, um remate do isolado Sesko. Salvou Ronaldo e Martínez.
Quando uma equipa precisa tanto de um herói como Portugal precisou contra a Eslovénia, ontem, em Frankfurt, isso não é habitualmente um bom sinal. A seleção nacional vai estar nos quartos-de-final do Europeu, nos quais defrontará a França, na sexta-feira, mas ficou a dever esta qualificação sofrida e emotiva ao extraordinário encontro de Diogo Costa com a história. Podemos e devemos enaltecer a proeza épica do guarda-redes, que depois de já ter desviado um remate de Sesko, isolado por uma escorregadela de Pepe, se tornou o primeiro guarda-redes a parar três penaltis num desempate no Europeu. Mas não é possível ficar por aí quando se avalia a exibição da equipa nacional, que voltou a ser curta e nada ajudada pela tomada de decisões de Roberto Martínez no momento de fazer substituições. Portugal teve alguns bons momentos, quase sempre no meio-jogo, seja através da direção compassada de Vitinha ou de boas combinações exteriores – à esquerda na primeira parte e à direita na segunda – mas não foi quase nunca capaz de ligar passes dentro do bloco esloveno ou de fazer corresponder ao volume de cruzamentos que ia acumulando as ocasiões de golo que eles justificariam, neste caso devido à noite infeliz de Ronaldo, em branco ao quarto jogo na competição. A equipa da Eslovénia não é má, já não perde desde Novembro, mas não é tão forte que justifique tanta inoperância, ainda por cima algo em que Portugal é reincidente, o que faz supor que “não são eles, somos nós”. Ontem valeu Diogo Costa, o guarda-redes que não tinha saído assim tão bem na fotografia do último Mundial mas que, suceda o que suceder daqui para a frente, já assinou o nome no livro de honra deste Europeu. Ao defender os penaltis de Ilicic, Balkovec e Verbic, todos “por instinto”, como admitiu no final – e, já agora, graças a três saltos felinos –, o português colocou-se ao lado do chileno Claudio Bravo como o único a, simultaneamente, sair de um desempate na fase final de uma grande competição sem sofrer golos e a parar três penaltis na mesma sessão. Bravo conseguira-o no desempate das meias-finais da Taça das Confederações, em 2017, e logo contra Portugal – defendeu os remates de Quaresma, João Moutinho e Nani. O português Ricardo tinha defendido três penaltis nos quartos-de-final do Mundial de 2006, em Gelsenkirschen, contra a Inglaterra, mas de caminho sofreu um golo. O ucraniano Shovkovskiy tinha mantido as redes invioladas no desempate contra a Suíça, ainda em 2006, mas um dos três remates que enfrentou acertou no poste. Diogo Costa fez algo de único na história destas grandes competições e juntou aos três penaltis parados uma mancha extraordinária, quando o mais temível dos avançados eslovenos, Sesko, se isolou, apesar das desesperadas tentativas de Pepe para o alcançar, juntando a força de pernas no sprint a uma meia dúzia de braçadas sôfregas, próprias de quem luta pela vida, a tentar vencer a resistência do ar. O minuto era o 115, não havia margem para se pensar em recuperações. Com Pepe a respirar-lhe nas costas, Sesko tentou bater Diogo Costa com um remate cruzado e rasteiro, para o lado esquerdo do guarda-redes, mas este esticou-se como se fosse feito de borracha e desviou o remate com a biqueira da bota. Ali, Diogo Costa manteve a equipa viva. Mais à frente dar-lhe-ia a alegria de viver.
As lágrimas de Ronaldo. Há-de ser difícil perguntar-lhe isto, que o homem é uma instituição e, como costuma dizer-se, o respeitinho é muito bonito. Mas até que ponto é que as lágrimas de Cristiano Ronaldo, ontem, depois de ver Oblak defender-lhe o penalti com que, aos 105’, ele podia ter posto Portugal na frente do marcador, não são a admissão subconsciente de uma incapacidade que a idade começa a fazer cair sobre ele de forma irreversível? Já são 39 anos, caramba, é natural e é algo que tem de ser aceite, antes de mais pelo próprio. Não se recusa a influência de Ronaldo no futebol português e mundial. Não se ignora o efeito que ele tem no público, que acorre aos estádios em grande número para o ver, e até nos adversários, que algum potencial ameaçador ele manterá, contribuindo para soltar companheiros. Não se nega que, para a idade, ele até esteja fantástico. Não se esconde a coragem que ele teve de ser o primeiro a bater um penalti no desempate, assumindo a responsabilidade de um capitão e contribuindo, a meias com a defesa de Diogo Costa à tentativa de Ilicic com que se abriram as hostilidades, para apagar a vantagem psicológica do guardião esloveno, por ter defendido um penalti nos 120 minutos. Não só foi corajoso como foi inteligente: se ele falha, há tempo para recuperar; se ele marca, a vantagem mental passa a ser portuguesa. Mas chega a um ponto em que a equipa parece prisioneira da vontade que Ronaldo tem ao mesmo tempo de a ajudar, de ser útil, e de somar mais e mais recordes – o jogador mais velho a marcar num Europeu, o único a marcar em seis Europeus seguidos... Não alinho no coro dos que, face aos sete remates ontem desperdiçados pelo CR7 (xG total de 1.42) decretam que ele é o elo mais fraco desta selecao. Não creio sequer que esteja em causa a sua titularidade – quanto mais não seja porque ainda não vimos mais ninguém no lugar dele. Mas parece uma evidência que Ronaldo não pode jogar todos os minutos, bater todos os livres, monopolizar as tentativas de alvejar a baliza adversária. Ainda que tenha ficado curto para responder a um par de bons cruzamentos que o CR7 de há uns anos certamente transformaria em golo – e esses são lances que nem sequer estão na estatística dos remates, porque ele falhou o encontro com a bola –, o jogo de ontem até é daqueles em que entendo que ele tenha ficado em campo até ao fim. Era um jogo de elevada componente emocional, vertente em que, apesar da crise de choro depois do penalti falhado, ele é fortíssimo. Mas o facto de Portugal ter chegado aos quartos-de-final do Europeu sem um golo do seu ponta-de-lança titular, um ponta-de-lança que é o mais rematador do Europeu, com 19 tentativas e um xG total de 2.73, leva a que seja difícil de explicar que a Gonçalo Ramos, por exemplo, só tenham sido dados 24 minutos em campo. E que até no insignificante desafio com a Geórgia Ronaldo tenha feito impor a sua presença. Em busca do quê, exatamente?
O caso Bernardo. Roberto Martínez fez ontem o onze que, ainda que sem ver treinos e saber da condição física de cada um, eu também faria. Ao escolhê-lo, contudo, contrariou a lógica de organização estrutural que vinha seguindo, que o mandara usar três centrais contra todos os adversários que jogam com dois avançados e linha de quatro para quem se apresenta com um só ponta-de-lança. Do mal o menos, o selecionador escolheu a equipa mais a pensar no que ela podia fazer ao adversário e menos a pensar no que o adversário poderia fazer-lhe a ela. Uma questão, porém, continua difícil de explicar. Já se percebeu que Martínez quer muito ter Cancelo a jogar por dentro, no caso a subir para segundo avançado nos momentos em que a equipa tem a bola, mas acaba por ser altamente penalizador que o faça na direita. A nuance foi excelente enquanto não houve Nuno Mendes, porque Cancelo partia da esquerda e ia em busca do espaço interior, de maneira a dar a Rafael Leão a largura de que ele precisa para sair da linha e ter espaço para desequilibrar. Com a entrada de Mendes, que por sinal fez um jogo excelente ontem, como lateral a defender e terceiro central a dar pé esquerdo à construção, Cancelo pôde ir para a direita, mas manteve as diagonais para o espaço interior. E é aí que o plano de Roberto Martínez se torna difícil de explicar, porque para Cancelo estar mais dentro, Bernardo Silva tem de jogar mais aberto, na linha. E isso não só não tira o melhor do lateral, que se safa por dentro mas é melhor por fora, como causa dificuldades desnecessárias ao atacante, de quem a equipa precisa para poder ligar o jogo por dentro.
E o caos das trocas. Ainda que limitado na direita até ao momento em que, no início da segunda parte, Cancelo se soltou, Portugal foi mantendo o controlo do jogo pela posse. Tinha dificuldades em ligar o jogo dentro, que os eslovenos também fecham sempre bem o corredor central, convidando os adversários a sair pelos corredores laterais e a cruzar, mas dificultava as transições ou o jogo direto para Sesko ou Sporar, juntando uma linha de cinco atrás quando lhe tocava enfrentar os lançamentos mais longos – recuava Palhinha para perto dos centrais. Vitinha foi fundamental no início do jogo, é certo que perdeu algum fulgor nos comandos por volta do final da primeira parte, mas voltara bem para o segundo tempo, em que voltara a ter influência ligando as fases de ataque. Até que, aos 65’, Martínez o tirou do campo, para entrar Diogo Jota. A equipa manteve o 3x2x5 ofensivo – Bruno Fernandes baixou para a dupla que regia o jogo a meio-campo e Jota entrou para avançado interior esquerdo, posição que até aí era ocupada por Bruno – mas as caraterísticas dos jogadores eram diferentes. Martínez veio dizer no final que a decisão foi tomada porque “a relva estava seca e lenta”, tornando difícil ligar jogo por dentro, mas a verdade é que após a saída de Vitinha o jogo partiu e as transições ofensivas eslovenas se tornaram mais frequentes. Não que Portugal passasse a defender pior: simplesmente passou a ter menos segurança na posse e, por isso, a perder mais bolas. Não se entendeu também muito bem a entrada de Conceição para a esquerda – e mesmo aquilo com que Martínez a explicou, que foi a vontade de abrir o jogo na linha à esquerda para encontrar espaço para Jota, entre o extremo e o ponta-de-lança, foi tão pouco convincente que o técnico desistiu rapidamente e devolveu o jovem ao seu habitat natural, à direita, metendo Bernardo Silva por dentro no prolongamento. O adversário que aí vem é complicado, vai exigir da equipa uma dimensão estratégica diferente, porque vai querer ter bola e posses demoradas, mas o que se pede à equipa de Portugal é sobretudo que mantenha as coisas simples. Esta é uma das lições fundamentais deste Europeu.
Entrelinhas
Cristiano Ronaldo cannot rage against the dying of the light forever, artigo de Oliver Kay, no The Athletic, a propósito da luta de Ronaldo contra a idade.
Gifted attackers play bit-part roles in shadow of fading star, peça de Jonathan Wilson, no The Guardian, sobre a perda de capacidades de Ronaldo na seleção portuguesa.
L’histoire d’une vraie fausse piste, história contada por Hugo Delom, no L’Équipe, explicando como Didier Deschamps manteve a imprensa e a própria equipa convencida de que ia jogar em 4x4x2 losango antes de escolher, à última hora, o 4x3x3.
Deschamps’s team resemble an island of calm while their country lurches to the right, artigo de Barney Ronay, no The Guardian, voltando aos posicionamentos políticos dos jogadores da seleção francesa.
La lengua envenenada de Ronald Koeman, artigo de Ladislao J. Moñino, no El Pais, opondo o selecionador holandês à figura tutelar de Johann Cruijff.
The Virgil Van Dijk paradox: a legend at Liverpool, divisive on the Netherlands, artigo de Simon Hughes no The Athletic, sobre a contestação ao defesa central na seleção neerlandesa.
Austria have the style and the ethos of a club side - but is that what international football really needs, artigo de Michael Cox, no The Athletic, sobre o espírito da seleção austríaca.
La pasión turca del niño Güler, perfil do jovem craque turco, escrito por Abraham P. Romero, no El Mundo.
Bellingham reining in youthful ambition to keep Nº 10 role, artigo de Sam Wallace no The Telegraph, sobre a adaptação de Bellingham à posição de segundo avançado na Inglaterra.
Ronaldo está neste momento a ser mais prejudicial que útil à equipa. É o centro da equipa, é por ele que passa tudo, faço minhas as palavras do jornalista da BBC, que escreveu que a equipa está a ser sacrificada por uma tournée de despedida. Ronaldo é um instituição sim, merece respeito por ser o melhor jogador da História e o maio nome de sempre do futebol Português, mas chega a uma altura em que a História pertence ao museu e temos de tomar decisões no presente, não podemos viver do passado. Fernando Santos foi o primeiro a perceber isso mesmo.
Não vi nem vou ver nenhum jogo deste clube privado, a fazer crer nesta crônica vem de encontro ao meu pensamento.