A decisão de Schmidt
O Benfica permitiu mais de 25 ações na área aos adversários num em cada cinco jogos. Em toda a época de 2022/23 só deixara isso suceder duas vezes. Schmidt percebeu que tem uma decisão a tomar.
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Roger Schmidt passou ontem mais tempo a falar do jogo com o FC Porto e da necessidade que não sente – e aí acho que ele tem razão – de pedir desculpa pela goleada do Dragão do que daquilo que hoje espera o Benfica, nos oitavos-de-final da Liga Europa, contra o Rangers (20h, SIC e Sport TV1). O Benfica está em três frentes e, se começa a ver reduzida a margem de erro para nelas continuar, isso é sinal de que ainda vai a tempo as conquistar, se casar a ideia com a prática – e é mais ou menos isso que está implícito nas poucas coisas que o técnico alemão foi dizendo acerca do desafio de hoje. “Normalmente, somos capazes de manter a bola longe da nossa área, sem conceder muitas situações”, explicou, antes de voltar ao que não foi feito no Dragão e em Alvalade, nas derrotas da semana passada. E que, na verdade, raramente foi feito esta época em jogos contra adversários mais fortes. Para se perceber que o Benfica de 2023/24 já sofreu tantos golos em 41 jogos (são 40) como nos 55 desafios que fez em toda a época passada basta consultar o Zerozero. Mas se quisermos entender as razões desta súbita permeabilidade, talvez seja interessante olhar para os dados fornecidos pela GoalPoint. Em toda a temporada de 2022/23, houve só dois jogos em que os encarnados permitiram aos adversários mais de 25 ações com bola na sua área: contra o Paris Saint-Germain, em Paris (32), e contra o Sporting, em Alvalade (26). Esta época, o total já vai em oito desafios acima das 25 ações na sua área: 29 contra o FC Porto no Dragão e ante o RB Salzburgo na Luz, 30 em Toulouse, 36 em Braga, 38 em casa contra a Real Sociedad, 42 em Alvalade com o Sporting, 43 em San Sebastian face aos bascos e 46 em San Siro com o Inter. O Benfica está a defender pior e não é atrás. Aliás, só por causa da extraordinária competência dos seus jogadores mais recuados – de que Trubin é exemplo, com um total de 8,5 golos salvos na Liga, de acordo com dados Opta Sports – é que ainda não superou o total de golos sofridos em toda a época de 2022/23. Uma equipa que constantemente limitava os adversários a menos de dez ações na sua área, anda agora com frequência entre as 15 e as 20 e permitiu mesmo mais de 25 em 20 por cento dos seus jogos. Isso tem de ser um problema. Portanto, se há coisa que Schmidt tem de mudar são as linhas da frente, as que de repente deixaram de ser capazes de estancar a hemorragia. Podemos continuar a discutir se Morato é bom lateral, se Carreras defende, se Otamendi está a perder qualidades, se Aursnes desenrasca à direita e à esquerda, mas o que verdadeiramente faz sentido debater é a falta que o norueguês faz mais à frente, na limitação da construção ofensiva dos adversários. Se quer reencontrar a equipa que fazia da forma de defender à frente a base do seu jogo com bola, nunca se vendo forçada a baixar muito ou a jogar dentro da sua área, Schmidt tem de dotá-la de jogadores capazes de bloquear os rivais à frente. O que o alemão disse ontem leva-me a crer que se decidiu finalmente a fazê-lo e a, entre outras coisas, recuperar Florentino e avançar Aursnes no campo, com todas as questões subjacentes à decisão: vai ter de usar, atrás, jogadores nos quais não tem tantas razões para confiar, como Carreras ou Morato a lateral, vai ter de encomendar uma velinha para proteger a regularidade de Bah, e vai ter de abdicar, a meio-campo e à frente, de quem tem estatuto e criatividade para os momentos com bola. Porque a conta é terrivelmente simples de fazer. Se jogar com ponta-de-lança, como se impõe para ter a referência frontal de que Rafa precisa para se tornar o jogador mais letal da equipa, se lhe juntar Rafa, se meter Aursnes na linha da frente e se utilizar Florentino e João Neves a meio-campo, só sobra uma vaga para Di María, Neres, João Mário e Kokçu. Essa é a decisão que Schmidt tem de tomar. Hoje se verá se está preparado para ela.
Está descoberto o antídoto... Achei piada à quantidade de “especialistas” que, ontem, depois de verem a Atalanta encostar o Sporting às cordas, no jogo de Alvalade (e há Flash para ver aqui), e apercebendo-se de que era a segunda vez que os rapazes de Gasperini o faziam esta época, vieram para o Twitter decretar que a coisa afinal é muito simples e que está descoberto o antídoto para lidar com os leões nesta ponta final da época. É só marcar homem-a-homem, meter pressão em cima da saída e já está. Só que convém que tenham a noção de que isso é mais ou menos como eu ver o Usain Bolt a correr os 100 metros em 9,58 segundos e vir dizer que aquilo afinal de contas é muito simples: é só meter as pernas uma à frente da outra muito depressa e já está. Rúben Amorim falou no final do jogo da especificidade desta Atalanta, que marca homem-a-homem a todo o campo, bem como do ressurgimento dessa forma de jogar no futebol mundial – e eu já tinha escrito sobre o tema aqui, há dois anos. Mas, só para que tenham uma ideia, o treinador da Atalanta, Gianpiero Gasperini, é um dos gurus da marcação homem-a-homem, talvez a par de Marcelo Bielsa, e já a trabalha em Bergamo há oito anos. Achar que de repente se diz a um grupo de jogadores algo como “olhem, é cada um ao seu e está resolvido” é desvalorizar de tal forma o papel do treinador e o papel do treino em si que se torna completamente descabido no futebol de hoje. A Atalanta não é um colosso do futebol mundial, longe disso. A estratégia de Gasperini não é imbatível – longe disso também, como se viu na forma como ainda recentemente o Inter a fez dançar antes de lhe ganhar por 4-0. Em Portugal, Jorge Jesus chegou a tentar pôr o Benfica a jogar assim: e foi assim que perdeu por 3-1 na Luz com o Sporting de Amorim, por exemplo (e na altura até expliquei a coisa neste texto). O futebol é muito mais complexo nas suas receitas do que parece.
Os dias de repouso. Há mérito na ideia de que para lidar com aquela Atalanta super-física é preciso frescura, movimentação sem bola, capacidade de condução, alerta mental para manter a circulação baixa e a atração da pressão. Ganham, por isso, relevância as queixas feitas por Rúben Amorim, segundo as quais os seus jogadores estão cansados e a esperança de que, em Bergamo, onde já vão beneficiar de mais um dia de intervalo entre partidas, poderão estar em condições de discutir o jogo. Sempre li que o período de recuperação necessário são as 72 horas regulamentares. Três dias e, pelo menos no imediato, está tudo em condições de jogar outra vez – depois se no final da época aparece uma fatura para pagar, isso já é uma conversa diferente... No entanto, Amorim fala em quatro dias, 96 horas portanto. E as exibições deste Sporting parecem dar-lhe razão. Neste ciclo, o Sporting esteve bem contra o SC Braga (5-0, com quatro dias de intervalo), com o Young Boys (3-1, quatro dias), com o Moreirense (2-0, quatro dias), mas já claudicou face ao Young Boys (1-1, três dias) e o Rio Ave (3-3, três dias). Voltou a estar bem contra o Benfica (2-1, quatro dias), mas esteve à beira de perder pontos com o Farense (3-2, três dias) e sofreu com a Atalanta (1-1, três dias). Há aqui um padrão que contraria a ciência tida como válida, mas que encontra acolhimento no que disse ontem Pep Guardiola, depois de ver o Manchester City ganhar ao FC Copenhaga por 3-1 e carimbar uma vaga nos quartos-de-final da Liga dos Campeões com uma série de suplentes em campo, por manifesta incapacidade de titulares, como Bernardo Silva ou Foden. “Eles estavam exaustos”, justificou o catalão. “Normalmente, se jogas a Liga dos Campeões à quarta-feira, deixam-te antecipar o jogo de campeonato para sábado. Neste país [Inglaterra] não é assim. Tivemos de jogar no domingo. E já sei que vão dizer-me que as TVs é que pagam e que por isso o melhor é calar-me”, afirmou ainda esta outra vítima da maldição dos três dias. Vale a pena debater a coisa.
A praga dos chega’misso. Ole Gunnar Solskjaer, ex-craque e antigo treinador do Manchester United, foi ontem ao podcast “Stick to Football” falar sobre tudo com Gary Neville, Roy Keane, Ian Wright, Jamie Carragher e Jill Scott. A conversa vale bem a pena (pode ouvi-la na íntegra aqui), porque passa pela recomendação não seguida de contratação de Erling Haaland, pelo regresso de Cristiano Ronaldo, pelo dia em que o norueguês percebeu que ia ser demitido e pelo muito que mudou no futebol com a eclosão dos membros da Geração Z. Já se sabe o que sucede sempre que um grupo de Xers – a geração de todos os presentes e a minha também, por sinal – começam a falar dos Zoomers: acaba com a conclusão de que este Mundo está perdido. No caso do Manchester United, havia quem não quisesse ser capitão, quem não se predispusesse a aparecer nas flash interviews, quem não aceitasse uma crítica, viesse ela dos pundits televisivos, dos jornais ou até do treinador e da sua equipa técnica. O problema é que o futebol gerou uma quantidade absurda de mini-vedetas, rodeadas da sua própria bolha de ‘chega’missos’, os auxiliares que são pagos para assegurar que os jogadores não têm de se incomodar com as coisas que fazem parte da vida normal das pessoas. E depois isso reflete-se na maneira de lidar com, adivinharam, essas coisas que fazem parte da vida normal das pessoas, como liderar, assumir responsabilidades ou fazer auto-crítica. E, sim, esse é um caso geracional.