Atacar com os centrais
Foi Edwards quem vestiu a capa de Messi e resolveu o jogo do Sporting frente ao Estrela, mas Amorim dificilmente teria ganho sem trocar os defesas-centrais, chamando St. Juste e Inácio.
Haverá poucas coisas mais frustrantes para um adepto de futebol do que ver a bola parada nos pés de um defesa-central. Naquele momento, é como se impuséssemos uma espécie de “freeze frame” no jogo, como se tudo o que está a acontecer no campo não passasse de uma encenação. “Pára tudo!”, grita o realizador, antes de entrar pelo relvado adentro para corrigir posições. Foi esta espécie de imobilismo que marcou a primeira parte do Sporting-Estrela, de ontem. A bola ia dos pés de Diomande para os de Coates e dos do capitão para os de Matheus Reis e nada se mexia à frente deles – a começar pelo bloco estrelista, que não saía em pressão, não desmontava a tenda a não ser no momento que achava conveniente. E só a condição de líder da classificação e, a partir de certa altura, o golo de Bragança, temperaria nas cabeças dos adeptos a tentação de assobiar, de pedir pressa aos seus. Quando, depois de noites menos conseguidas, os treinadores vêm dizer que a equipa teve demasiada pressa, que não soube esperar pelo momento certo para fazer as coisas, estão necessariamente a referir-se a jogos bem diferentes da primeira parte de ontem, onde se houve coisa que o Sporting teve foi um excesso de paciência que é o exato oposto das coisas precipitadas. A bola chegava a parar nos pés dos homens de trás de Amorim por várias razões. Porque, sabendo que o adversário tem gente rápida na frente e gente hábil na forma de encontrar esses velocistas, o treinador terá aconselhado os seus a fazer de tudo para evitar um jogo de transições permanentes, aquele jogo partido que favorece quem corre para o espaço, mas ao mesmo tempo porque do outro lado estava uma equipa igualmente paciente, que queria encontrar a profundidade, mas não estava disposta a sair na busca da bola a não ser quando fosse a altura determinada no seu plano de jogo. Sporting e Estrela enfrentaram-se num relvado com uma bola de futebol pelo meio mas podiam bem ser duas crianças a jogar “à sardinha” no recreio da escola, a ver quem se mexia primeiro para procurar a palmada sem a qual não se ganha. A diferença é que neste jogo havia mais condicionantes. Se a mudança de lado era lenta para evitar cair nos erros que conduzam a transições e isso não criava grandes dificuldades à basculação do bloco estrelista, a capacidade dos homens de trás dos leões para encontrarem companheiros dentro do bloco e ligarem com eles também não era de todo extraordinária. Dizia-vos no início deste texto que haverá poucas coisas mais frustrantes para um adepto de futebol do que ver a bola parada nos pés de um defesa-central e isso não é apenas porque os defesas centrais são geralmente quem está mais atrás na organização de um ataque – e se a bola está com ele está o mais longe possível da palmada metafórica na mão do adversário. É também porque, regra geral, os defesas-centrais são, ao mesmo tempo, dos menos ajeitados em campo. O Sporting acabou por ganhar o jogo graças a dois momentos de génio de Edwards, no primeiro a fintar todos os que lhe apareceram pela frente antes de marcar, no segundo a encontrar num cruzamento o milímetro cúbico exato onde Paulinho ia surgir a cabecear, mas creio que dificilmente Rúben Amorim teria ganho este jogo sem trocar os defesas-centrais, fazendo entrar St. Juste e Inácio. Coates e Matheus Reis estavam a tentar como lhes está no sangue, subindo com bola nos pés, fixando opositores para potencialmente libertarem outros, mas se isso não resultava acabava por libertar o espaço para as diagonais de Jabá e depois de Kikas. Além do efeito dissuasor que passa por ter centrais mais rápidos em campo, menos suscetíveis de serem surpreendidos nas costas, o Sporting passou a ter também centrais capazes de desenhar logo desde trás as trajetórias que feriam o adversário. A bola, nos pés deles, até parece que está parada, mas na verdade não está. Está mesmo à procura do sítio onde pode magoar.
A crescer no sistema. O Benfica repetiu não só o 3x4x3 como o onze de Arouca em Chaves e nota-se que está a crescer no sistema. A saída de bola tem tudo para melhorar com a entrada de Morato e a liberdade conferida a Otamendi para ir empurrar pelo meio na frente dá à equipa uma via pouco ortodoxa de encarar os três de trás, bem mais próxima do antigo líbero alemão do que dos sistemas que nos tempos modernos mandam sair os centrais dos lados. A inclusão de Aursnes e João Neves a partir das faixas parte da necessidade de ter inteligência ali, de forma a permitir aos alas aparecerem nos corredores onde há espaço, adaptando-se à movimentação mais anárquica de quem está na frente, mas toda esta mobilidade tropeçou na exibição de Gonçalo Guedes, que até já defendi que podia ser o ponta-de-lança ideal para este Benfica, neste momento, mas que nos primeiros 45 minutos de Trás-os Montes roubou ao Benfica a possibilidade de ter uma base sustentável em cima da qual crescer no ataque. Ao intervalo, Schmidt trocou Guedes por Cabral e a equipa melhorou, porque o brasileiro lhe deu essa referência frontal a partir de uma posição que o português interpretou de forma diversa, surgindo até frequentemente como via de saída junto às laterais. Ninguém perguntou a Roger Schmidt se eram ordens dele, se a ideia era formar um carrossel permanente com Rafa e Di María – e se era as ocasiões anteriores em que isso foi testado já tinham mostrado que a ideia do desaparecimento do ponta-de-lança em favor de jogadores tão pouco capacitados para ser os elementos mais avançados é má – ou se foi uma interpretação livre de Guedes a levar o Benfica a desperdiçar 45 minutos, mas francamente gostava de saber.
Não há milagres. As declarações de Sérgio Conceição depois da derrota do FC Porto, em casa, contra o Estoril, soaram a desculpa de mau pagador. Sim, o FC Porto tem tido lesões em cima de lesões e isso é estranho. As notícias acerca do recurso de alguns jogadores ao famigerado “Doutor Milagres” – e agora há dois, o português Paulo Araújo e o brasileiro Eduardo Santos – para resolver recuperações fora do âmbito do clube são algo do domínio do inexplicável numa estrutura que tem condições para se rodear de tudo o que é melhor em cada área de ação. Mas, vamos ser absolutamente claros: o FC Porto está a jogar pouco e os jogos muito bem conseguidos contra o Shakhtar e o Royal Antuérpia têm mascarado essa realidade que está à frente dos olhos de quem acompanha a Liga Portuguesa. E, apesar das cinco lesões musculares que afetam o plantel neste momento carecerem de explicação – é o treino físico, o treino invisível, a alimentação, a morfologia dos jogadores? – não foi pela falta de um lateral esquerdo ou de Galeno que os dragões perderam em casa com o último. Até porque João Mário jogou bem na esquerda, Jorge Sánchez não comprometeu à direita e quem substituiu Galeno – Francisco Conceição – até foi o melhor da equipa da casa. O problema do FC Porto é que, ao contrário do que sucede na recuperação física dos jogadores lesionados, no campo não há mesmo milagres. E é certo que a perda de talento nos últimos três anos – Luis Diaz, Danilo, Corona, Sérgio Oliveira, Fábio Vieira, Vitinha, Uribe e Otávio – gerou um encaixe de mais de 200 milhões de euros mas depois muito desse dinheiro perdeu-se nas frestas do sistema e não trouxe substitutos à altura. As contas da SAD mostram um FC Porto a precisar de gerar mais valias no futuro imediato e sem muitas hipóteses de o fazer. Porque aqui, como no campo, também não há milagres.
A festa de Kenedy. A vitória do Fluminense na final da Libertadores pode ser vista como uma ode ao talento de Ganso ou à carreira de Marcelo, como um manifesto do futebol de Fernando Diniz, mas para muitos, que basicamente consomem Reels ou Tiktoks, não passará do jogo em que John Kennedy, homónimo do presidente americano que resolveu a crise dos mísseis, enfiou um balázio nas redes do Boca Juniors, no prolongamento, e foi expulso a seguir, com um segundo amarelo, por ter ido festejar com os adeptos nas bancadas. “É um crime!”, dizem. “Estão a matar o futebol!”, acrescentam. “A essência e a carga poética do jogo é a comunhão com os adeptos em delírio”, decretam. Concordo. É uma estupidez expulsar um jogador por festejar um golo. Preferia que isso não acontecesse, da mesma forma que não posso senão imaginar o que irá na cabeça de quem faz um golaço no prolongamento de uma final e se será possível controlar as emoções naquela altura. Mas gostava que todos os que se indignam se pusessem do outro lado, no lado dos adeptos do Boca Juniors. E o que veem ali? Festa? Ou o tempo para fazer o empate a escoar-se, o ímpeto de ir atrás do resultado a desvanecer mais um pouco em cada abraço que Kennedy dava em mais um torcedor delirante? Não me tragam problemas. Tragam-me soluções.