Pep e os 250 Porros
Guardiola diz que tem "250 emprestados" e não tem tempo para falar com todos. Não são tantos, mas esse é um dos entraves a uma competição mais saudável. Tanto por cá como internacionalmente.
Quem viu Pedro Porro transformar-se num dos maiores desequilibradores da Liga Portuguesa do último ano e meio e conhece menos bem o funcionamento do futebol mundial pode até ter ficado chocado com as palavras de Pep Guardiola, ontem, acerca do lateral direito que o Sporting tem em empréstimo de dois anos do Manchester City. “Temos 250 emprestados e eu não tenho tempo de falar com todos”, disse o espanhol que está à cabeça do projeto City, a mais ambiciosa tentativa de controlo do futebol mundial em curso. No fundo, apesar de ter motivado o City a pagar por ele 12 milhões de euros ao clube irmão que é o Girona FC, Porro está para o seu clube-mãe como Bruno Paulista ou Carlos Jatobá estão para o Sporting. Sabe quem são? É verdade que provavelmente também não conheceria Porro antes de ele chegar a Portugal, mas essa é uma boa forma de fazer o comparativo entre o poderio dos dois clubes que vão defrontar-se hoje, em Alvalade, no jogo de arranque dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões.
Podia pegar na avaliação global dos dois plantéis, recorrendo ao Transfermarkt: 991,3 milhões de euros o do Manchester City, 251,7 milhões o do Sporting. E isso, não sendo definitivo – um jogo é sempre um jogo... – já quer dizer alguma coisa. Mas depois olha-se com um pouco mais de atenção e vê-se a forma como o City vai gastando em jogadores aos quais não chega a dar um jogo para mostrarem o que valem. O que está aqui em causa nem são as transferências milionárias de gente como Grealish, Rúben Dias, Cancelo, Rodri, Mahrez, Laporte, De Bruyne ou Sterling, para citar só os jogadores que levaram o City a superar a barreira dos 60 milhões de euros. Aqui falo de trocos para dar ao arrumador. Nos últimos dois anos não foram só os 12 milhões em Porro. Foram 4,5 milhões em Kaboré, seis milhões em Diego Rosa, 6,5 milhões em Bustos, 8,5 milhões em Stevanovic... Entretanto, enquanto se espera para ver se os 10 milhões investidos em Kayky dão ou não resultado, já seguiram mais 17 milhões por Alvaréz, que ficou parqueado no River Plate. Não são 250 jogadores, como disse Guardiola, mas são na mesma muitos e é muito dinheiro.
Salvaguardadas as devidas diferenças, isso é um pouco o que os maiores clubes portugueses fazem também, ainda que a uma escala menor. Terá Rúben Amorim tempo – ou interesse – para falar com os seus 250 Porros? Provavelmente, também não. E, se o fenómeno pode ser abordado sob duas perspetivas, acreditem que a menos relevante é a do dinheiro que se vai gastando – porque basta um destes casos dar certo para justificar o investimento nos outros todos. Bem mais interessante de seguir é, para mim, a perspetiva estratégica do domínio que os clubes – cada um ao seu nível – procuram atingir. É o facto de a existência de clubes que são financeiramente muito mais poderosos – primeiro graças a uma capacidade ilimitada de investimento e mais tarde por capacidade de angariação de receita nascida dos sucessos – impedir qualquer tentativa saudável de competição equilibrada. Se um clube tem meios para contratar a torto e a direito, sem se preocupar excessivamente com os erros que possa vir a cometer, o que fazem os outros? Aceitam sobras, as migalhas que esse clube mais poderoso vai deixando cair da mesa, na expectativa de conseguirem nutri-las a ponto de fazerem de uma delas uma boa refeição – como o Sporting, a nível europeu, parece estar à beira de fazer com Porro?
É por isso que qualquer tentativa de competição saudável tem de passar pela limitação do poder de contratar. E isto, que pode ser complicado de conseguir no plano jurídico – porque a globalização tornou a questão independente das fronteiras e os regimes legais divergem de uns para outros países ou até da União Europeia para o Reino Unido – mesmo assim não vai ser suficiente. Porque há coisas que o dinheiro de colossos como o City Group compra e que o deixam ao abrigo de quaisquer tentativas de limitação de contratações ou transferências. É que enquanto os clubes portugueses, no plano nacional, vão sustentando a hegemonia numa maior capacidade de angariação de receita – sobretudo de marketing, incluindo a venda de direitos televisivos – e, depois, na capacidade para detetar, atrair e parquear casuisticamente os melhores atletas, tanto por empréstimo como nas suas equipas B ou de sub23, no plano internacional, no campeonato dos colossos, isto já se faz de forma organizada, em grupo. Tal como tenho vindo a explicar na série Donos da Bola – e aqui tem o primeiro, o segundo e o terceiro artigos – os grandes clubes não estão sozinhos nesta luta. Garantiram já a existência de incubadoras que lhes permitem parquear de forma controlada os jogadores que vão sendo capazes de contratar mas não de absorver.
O City não é só o Manchester City. É o Girona FC (de onde veio Porro e onde está Bustos), o Troyes AC (onde estão Kaboré, Palmer-Brown e Ilic), o Lommel SK, o New York City FC, o Melbourne City FC, o Yokohama F Marinos, o Montevideu City, o Mumbai City, o Sichuan FC ou o Club Bolivar. Isto é tudo feito às claras, porque é legal. Mas não devia ser, porque vem desvirtuar a integridade da competição. Impedir este tipo de estratégias devia ser uma das maiores prioridades de quem pensa o futebol a nível global.