Pensar à grande e jogar à pequeno
Há 20 anos, pequenos a pensar à grande eram uma novidade. Hoje já são comuns. O que mudou, entretanto, foi a capacidade dos grandes para jogar à pequeno. Aqui ficam algumas pistas para os entender.
O futebol mudou muito em 20 anos – e percebo isso, por exemplo, quando recupero textos que escrevi já na ponta final da minha fase “valdanista”, de que é exemplo este “Jogar como os grandes para vir a ser como eles”. Em 1999, jogar contra um grande “olhos nos olhos” era uma coisa rara. O mais normal era qualquer equipa que se deslocasse ao Dragão, a Alvalade ou à Luz estacionar o autocarro à frente da sua área, com três centrais e dois trincos, e abdicar do avançado de referência, saindo com dois laterais de cada lado, um a fazer de defesa-defesa e outro de defesa-avançado. Até que uns visionários viraram o jogo, entenderam a formação de uma equipa com base num conceito de identidade e perguntaram a si mesmos: “porque não”? O problema é que do outro lado também há cabeça: nestes 20 anos, os treinadores dos grandes já tiveram tempo para se adaptarem à novidade e colocarem novos problemas. Já sabem pensar como pequeno para ganhar.
Ontem, Vasco Seabra, treinador do Marítimo, e Álvaro Pacheco, treinador do FC Vizela, foram arrasados por um total de 11-1 em dois jogos com Benfica e FC Porto e viram-se confrontados com a mesma pergunta: “Foi mais mérito do adversário ou demérito da sua equipa?” Claro que esta é uma pergunta que permanecerá para sempre sem resposta. Ou sem uma resposta válida e inatacável. É possível olhar para o Benfica-Marítimo e ver a falta de agressividade dos madeirenses, muito longos no campo e a permitirem sempre espaço para as acelerações do Benfica entre linhas. Como é possível olhar para o FC Vizela-FC Porto e ver os minhotos mais juntos, mas em consequência disso mais subidos e, por isso mesmo, a darem muito espaço atrás da sua última linha, num convite permanente ao ataque portista à profundidade, que os dragões não têm por hábito enjeitar. Há 20 anos, os pequenos jogavam como pequenos e os grandes jogavam como grandes e abríamos a boca de espanto quando alguém que devia pensar pequeno acabava a pensar grande, entendendo que com base nessa identidade iria depois ser capaz de ganhar mais jogos “do seu campeonato”.
Por alguma razão o Marítimo de Seabra entrou na Luz com um histórico de duas vitórias e um empate, tendo marcado em todos os jogos – e neste voltou a marcar, apesar de ter saído com sete golos nas suas redes. Por alguma razão o FC Vizela de Pacheco recebeu o FC Porto a meio da tabela depois de duas subidas de divisão seguidas. Por alguma razão também eu já dissera no Futebol de Verdade que, regra geral, estes jogos potencialmente mais difíceis são aqueles em que o Benfica e o FC Porto costumam sentir menos dificuldades. E é esta a questão que mais me intriga: porque é que Benfica e FC Porto são mais contundentes nestes jogos com as equipas mais positivas e sofrem mais contra equipas que optam antes por se precaver, se ao Sporting acontece o contrário. Por que razão é que o Sporting sente mais dificuldades com equipas que optam por dividir o jogo e passeia nos desafios em que os outros dois candidatos sentem mais dificuldades, contra adversários que estacionam o autocarro? Não é certamente por uma questão de qualidade, se ainda recentemente o campeão obliterou este Benfica na Luz e se, em Setembro, o seu próprio treinador reconheceu que pela primeira vez tinha sido superior ao adversário, no empate com o FC Porto, em Alvalade.
Sim, os leões de Rúben Amorim tiveram problemas, por exemplo, no jogo em casa com a versão anterior do Marítimo, a defensiva, de Júlio Velásquez – que roubou dois pontos ao FC Porto... – e só ganharam esse jogo nos descontos. Mas nunca nessa noite os madeirenses deram a sensação de poder fazer mais do que resistir – e quando assim é já se sabe que o mais certo é acabarem mesmo por claudicar. Em contrapartida, a equipa que mais fez sofrer o Sporting esta época – tirando o Ajax de futebol híper-positivo – foi o FC Famalicão, onde os dirigentes já desistiram da versão positiva de Ivo Vieira, mas só depois de o Benfica lá ter ido passear a sua superioridade. A única explicação que encontro para esta duplicidade tem a ver com a identidade dos próprios candidatos e com formas diferentes de encarar o “pensar à pequeno” entre uns e outros. São até questões posicionais, que ficaram à vista em Barcelos, num jogo de dez para dez que o Sporting ganhou por 3-0 mas com mais problemas do que o resultado pode deixar antever.
A base inegociável deste Sporting, o seu “pensar pequeno”, são os cinco atrás, o que deixa a equipa com outros cinco homens do meio-campo para a frente – e os laterais, se eles lá chegarem. Em Barcelos, com um a menos, mas mantendo os cinco atrás, Amorim tinha menos um a atacar e só ganhou o jogo depois de explicar aos laterais que tinham de ter “chegada”. Que tinha de lhes pedir um esforço extra para meter grandeza no pensamento. A maior arma deste Sporting, o “pensar pequeno” que lhe deu o campeonato, é a estabilidade defensiva, é a força dos números em organização defensiva, algo que pode ser contrariado se o adversário meter mais gente na frente, igualando esses números, e que, se isso não suceder, lhe serve de base para a manifestação natural da sua maior qualidade com bola. Disso, Amorim não abdica. E faz bem, mesmo que de caminho vá passando por alguns calafrios e seja levado a pensar duas vezes sempre que vê os rivais arrasar boas equipas que a ele lhe causam noites de sobressalto.