Os agentes de mudança
Ronaldo usou a terceira pessoa do singular para hiperbolizar o seu efeito no crescimento da Liga saudita. “Onde o Cristiano vai, gera interesse”. Mas não é ele o maior agente de mudança. É o dinheiro.
O futebol sempre valorizou tanto o “nós”, o coletivo, que se arrepia quando ouve um “eu”, geralmente vindo de quem se tem em elevada conta. Jorge Jesus, por exemplo, foi sempre criticado pelo desassombro com que assumia os méritos que achava que eram dele, traço de personalidade que levou à criação de uma “personagem” à qual jornalistas menos honestos até atribuem palavras que ele efetivamente nunca proferiu, como as mais recentes sobre Arda Güler, o adolescente que saiu do Fenerbahçe para o Real Madrid. “Foi graças a mim que ele lá chegou. Fico feliz por lhe ter ensinado a jogar futebol corretamente”, foi o que Jesus não disse, mas que saiu em letra de imprensa num jornal turco e que, em bom rigor, qualquer um de nós podia imaginá-lo a dizer, desde que devidamente entusiasmado. A mentira, para ser eficaz, tem de se aproximar da verdade. Cristiano Ronaldo incorpora a personagem de outra forma, substituindo a bazófia da superioridade intuída pelo desdém nascido da inferioridade alheia. Ontem, depois de o seu Al Nassr ter apanhado 5-0 do Celta de Vigo, equipa que lutou até à última jornada para evitar a descida em Espanha – é verdade que num jogo particular... –, Ronaldo disse que não volta a jogar na Europa, porque as Ligas da Europa baixaram muito de nível. Espanha está mal, a Alemanha está mal, Portugal, enfim, não é “top, top” e até a Itália estava morta até ele lá chegar, em 2018, para efetuar uma manobra de ressurreição semelhante à que está a fazer agora na Arábia Saudita. E é aí que Ronaldo transporta o crédito para a terceira pessoa do singular – como fazia Jardel, por exemplo, falando de si próprio como se não estivesse ali, provavelmente para evitar o desconforto do uso do “eu”. “Onde o Cristiano vai, gera interesse. Não tenho dúvidas de que para o ano vamos ter ainda mais craques na Arábia Saudita”, disse o capitão da seleção nacional. Ora eu também não tenho dúvidas de que a chegada de Ronaldo ao Al Nassr, bem como a mudança de Messi para o Inter Miami – onde foi apresentado por Jorge Más como “o melhor 10 do Mundo” – terá efeitos no campeonato periférico para onde ele foi. Mas discutir qual é o campeonato mais forte, se a Liga saudita ou a MLS norte-americana, tem tanta relevância no equilíbrio do futebol mundial como o terá no plano nacional o debate acerca de quem é a melhor equipa do distrito de Santarém, se o Coruchense ou o União. Zero! E, sim, as presenças de Ronaldo e Messi levarão jogadores a aceitarem propostas para as quais, se calhar, se eles lá não estivessem, estes nem olhariam direito. E levarão também adeptos a verem um ou outro jogo na TV. Contudo, Ronaldo e Messi, os dois melhores futebolistas mundiais deste século, precisam de se habituar à ideia de que já deixaram de funcionar como principais agentes de mudança – são hoje meios à disposição desses agentes. O que vai mudar a Liga saudita não é Ronaldo. É o dinheiro que o rei resolveu torrar no futebol e que desaparecerá num ápice se de repente o rei resolver virar-se para o badminton. O que vai mudar a MLS não é Messi. É o tempo – porque ali a mudança tem sido mais consolidada e por isso mesmo mais lenta, desde o dia de 2007 em que lá chegou Beckham. Esta é a altura em que é preciso evoluir na conjugação do verbo, para a terceira pessoa do plural, e começar a dizer “eles”. Não deve ser fácil.
O mercado dos avançados. Está muito difícil de desenlear o novelo em que se transformou o mercado dos avançados, porque Mbappé se meteu num braço de ferro com o Paris Saint-Germain e Kane meteu-se noutro com o Tottenham. Essa é a divisão de elite. Tanto um como o outro podem sair livres daqui por um ano, mas se o PSG diz que o francês “ou renova ou sai já”, para não perder o investimento que fez nele, o Tottenham faz orelhas moucas ao interesse do Bayern e às declarações até um pouco abusivas de Uli Höness e fica em stand-by, à espera que o jogador saque primeiro – coisa que Kane não pode fazer, quanto mais não seja porque se o fizer torna imediatamente a operação mais cara e menos lucrativa para si próprio. Depois há um outro nível. O PSG precisará de substituir Mbappé. Há Vlahovic, há Osimhen, há até Kane... O Chelsea quer trocar Lukaku por um avançado que lhe sirva e já se fixou também em Vlahovic. O Inter ia ficar com Lukaku mas agora já diz que não senhores, porque o belga piscou o olho à Juventus, cujos adeptos se manifestaram ontem em fúria, porque acham que uma coisa, compreensível, é reduzir a carga salarial do plantel, e outra, mais complicada de aceitar, seria trocar um atacante promissor, de 23 anos, por quem se pagou 70 milhões de euros há um ano e meio, por outro, de 30 anos, que tem andado de empréstimo em empréstimo e que na temporada passada não só perdeu 18 jogos por lesão como depois foi suplente de Dzeko. Como acontece sempre, é preciso uma transferência para se começar a puxar o fio ao novelo. A questão é a de quem aciona o motor de arranque.
Guerreiro no Bayern. Rapahel Guerreiro foi ontem apresentado no Bayern Munique, para onde saiu, a custo zero, depois de sete anos no Borussia Dortmund. Basta olhar para os nomes que o Bayern sacou em Dortmund nos últimos anos, fortalecendo-se e enfraquecendo o rival, para se perceber o peso que o lateral português tem neste momento na Bundesliga. Falo de Götze, Lewandowski e Hummels, todos contratados quando o Borussia era indiscutivelmente a segunda força alemã – porque quando essa passou a ser o RB Leipzig foi lá que os bávaros passaram a abastecer-se, com gente como Sabitzer e Upamecano. Se Kane acabar também por se transferir para Munique poderemos ouvir Guerreiro dizer: “Onde o Raphael vai, gera interesse”? E que o ponta-de-lança inglês quis jogar a Liga dos Campeões, coisa que não vai poder fazer no Tottenham? Ou neste caso concordamos que o verdadeiro agente de mudança é mesmo o dinheiro?