O Vitória e a massa crítica
A massa crítica é o maior património do Vitória SC em dia de centenário. Mas o clube tem de aprender a canalizá-la para a defesa dos seus próprios interesses numa via de maior positivismo.
Não tenho muitas dúvidas de que o sentimento geral de insatisfação que se verifica por estes dias de celebração do centenário entre os adeptos do Vitória SC, e que mostrou a face visível na contestação de ontem, durante e após a derrota num particular com o GD Joane, se deve a uma razão que não pode ser controlada por quem manda no clube: o SC Braga está a voar. Já sei que, sobretudo os mais orgulhosos, vão dizer que não, que o clube é suficientemente grande para valer por si mesmo, mas a verdade é que os adeptos de futebol, sejam eles de que clube forem, funcionam sempre por oposição à sua nemesis – e a do Vitória é o rival local, que não consegue bater na classificação final da Liga há cinco anos, desde o quarto lugar de 2017.
Separados por 25 quilómetros, o Vitória SC e o SC Braga são dois dos poucos casos de apoio popular real no futebol português além dos três grandes e, como qualquer espécie em vias de extinção, devem por isso ser preservados. Todos os jogos em casa das duas equipas na Liga atual, por exemplo, se disputaram com mais de dez mil pessoas nas bancadas, tendo o dérbi entre ambos levado acima de 20 mil adeptos ao Municipal de Braga. Isto não só é raro como não acontece com mais nenhum clube em Portugal – à exceção de casos muito especiais, como por exemplo as ações de marketing que estão a ser feitas na UD Leiria, na Liga 3. Dos 19 jogos da edição atual do campeonato que tiveram mais de 10 mil pessoas nas bancadas, dez aconteceram na Luz, no Dragão ou em Alvalade. Depois, houve um Casa Pia-Benfica (em Leiria) e um Boavista-Benfica (no Bessa), que estão no rol devido à onda de apoio que a série de vitórias da equipa de Roger Schmidt está a motivar. Os outros foram os desafios realizados em casa por SC Braga e Vitória SC. Todos, sem exceção.
E o que é caso de estudo, aqui, é que mesmo estando por baixo em termos de classificação de uma forma reiterada, o Vitória SC se bata com o tal SC Braga que tem voado e que se tem aproximado dos grandes no que toca à competitividade. Excetuando os jogos com os grandes ou o dérbi entre eles, o Vitória SC meteu mais gente para ver o Estoril ou o Casa Pia do que o SC Braga nas receções ao FC Vizela ou ao Marítimo. A diferença foi marginal, mas existiu, a favor dos vitorianos. Pode até ter que ver com os horários dos jogos – e nisso o decorrer da temporada vai aumentar a amostra e deixar um contributo válido para entendermos melhor o fenómeno. Como pode ter que ver com as políticas restritivas de bilhética que o SC Braga adota ou com a localização dos dois estádios – é muito mais fácil a um vimaranense ir ao Dom Afonso Henriques, que fica dentro da cidade, do que a um bracarense ir à Pedreira, localizada numa espécie de via de circunvalação. Mas a sensação que fica, de qualquer modo, é a de que a massa crítica vimaranense está mais presente do que a bracarense. Às vezes – como foi o caso ontem – até é massa demasiado crítica.
A questão é que a dinâmica entre massa crítica ativa e liderança forte é sempre muito difícil de gerir, como já se viu em inúmeras outras situações. É fácil olhar para a realidade recente e associar a vantagem competitiva do SC Braga a duas décadas de um mesmo presidente, António Salvador, que chegou ao clube em 2003 e, ainda por cima, nos últimos anos parece ter temperado os impulsos que o levavam a mandar os treinadores para debaixo do autocarro com facilidade, consolidando o projeto desportivo/empresarial que tem para o futebol do clube. Como é fácil aos vitorianos saudosos do tempo do último líder carismático que tiveram, António Pimenta Machado, que foi presidente de 1980 a 2004, lembrarem que nessa altura eram eles quem estava na vanguarda e se batia com os grandes, ao passo que o SC Braga andava a lutar para não descer de divisão. Pimenta e Salvador tinham até coisas em comum: podem ser acusados de, em determinados momentos, colocar os seus próprios interesses ou negócios em primeiro lugar, mas nunca submeteram os clubes ao caciquismo político que os sacrificou debaixo de outras lideranças. E é curioso que Pimenta Machado tenha saído em 2003 e Salvador tenha chegado em 2004. Quase como se os dois se tivessem encontrado numa estrada empoeirada e, num daqueles clichés dos westerns mais cabotinos que todos vimos, tivessem dito um ao outro: “Não há lugar para nós os dois nesta cidade”. Ou neste caso, no futebol do Minho.
Há quem veja vantagem na eternização das lideranças, devido à maior facilidade com que se estabelecem ligações nos meandros, sejam do futebol, da política ou do que for. Ou mesmo à capacidade que se passa a ter para controlar – quem sabe até anular, como nas ditaduras mais ferozes – a massa crítica. Ora essa é a razão que me faz desconfiar de instituições que mantêm a mesma cabeça durante décadas. Porque, como já vimos em diversos casos de controlo e manipulação do pensamento global por parte de um líder, seja através de um braço armado ou da propaganda, não há crescimento real sem impulso popular livre. Em dia de centenário, o Vitória SC deve agradecer o facto de ter uma massa crítica tão ativa como tem. Mas precisa de aprender a canalizá-la para uma defesa mais positiva dos interesses do clube. O resto só pode chegar através da tranquilidade e da competência da gestão, tanto nos gabinetes como no campo de treinos.
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