O Villa e a pirâmide subvertida
O que me espanta no triste caso do Villa AC não é a falta de escrúpulos associada à credulidade. Isso é a história da humanidade. O que espanta aqui é a forma como se subverte a pirâmide do futebol.
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Foi pelas piores razões que o Villa Athletic Club saltou para a agenda mediática. O clube criado no Verão por um grupo de amigos liderado pelo “influencer” Fábio Lopes, que se chama a si próprio nas redes sociais “Conguito”, está a transformar-se no mais recente nado-morto do futebol português, arrastando atrás de si jogadores, treinadores e até dirigentes. O estoiro teve que ver com a junção da falta de escrúpulos ao otimismo de quem acha que teve uma grande ideia e à credulidade de quem espera por dias melhores e é próprio da história da humanidade. É e será sempre assim. Mas permite-nos refletir acerca do problema que é a subversão da pirâmide no futebol nacional.
A primeira coisa que me faz confusão nesta história dos salários em atraso no campeonato distrital de Portalegre é haver salários no distrital de Portalegre. Estamos três divisões abaixo do último escalão profissional e num dos distritos mais pobres do país. Essa foi a razão pela qual, de resto, o Villa Athletic lá se inscreveu – e neste aspeto particular terá residido a única ação inteligente, ou vamos antes chamar-lhe “oportunista”, de toda esta história, que foi contada ontem pelo Miguel Lourenço Pereira na newsletter De Calcanhar. Que um grupo de amigos decida criar um clube de futebol e dar-lhe um nome pomposo em inglês diz-nos algo sobre eles, sobre as suas motivações. Que decidam inscrevê-lo na Associação de Futebol de Portalegre, mesmo só tendo jogadores e treinadores a residir e a treinar na região da Grande Lisboa – incluindo aqui a margem sul –, de modo a aproveitarem os factos de naquele distrito só haver uma divisão distrital e de o campeão regularmente recusar subir para o Campeonato de Portugal, tornando o acesso mais fácil, também nos diz alguma coisa sobre eles e a sua capacidade de disrupção. E já se sabe que todas as boas ideias têm de ter algo de disruptivo para funcionarem.
Mas que isso lhes seja permitido já nos diz muito mais sobre o futebol em Portugal do que sobre os conguitos. Anda por aí toda gente preocupada com o Conguito e como é que ele tem a lata de continuar a fazer rádio, televisão e YouTube, mas isso, lá está, é colocar o particular à frente do geral – e, sei muito bem, é o que rende na arte de fazer infotainement no século XXI. Sou solidário com quem saiu enganado desta história, do Meyong ao Edinho e ao André Carvalhas, com passagem pelos muitos outros que não são tão conhecidos, mas têm a mesma dignidade profissional. Uma dignidade que se viu, aliás, na forma como foram jogar a Elvas, deslocando-se em carros particulares, para evitar a desclassificação do clube devido a uma segunda falta de comparência. Ou como mesmo aqueles que não estavam inscritos pelo clube foram também e ficaram a ver o jogo da bancada. Mas também não é isso que me interessa. Nem é ir “trollar” as redes sociais do Fábio Lopes, produto de uma geração que foi educada a achar que ter sucesso no YouTube e no Instagram é o mesmo que singrar na vida e que se há gente a meter gosto depois haverá gente a meter dinheiro. Não há, como se aperceberam, às suas custas, todos os envolvidos neste processo.
Os campeonatos distritais são a base da pirâmide do futebol em Portugal. Servem para as equipas locais, baseadas na formação, darem uma saída aos que continuam a jogar quando chegam a seniores, seja porque gostam ou porque ainda acreditam que podem dar o salto para um ambiente mais recompensador. Admito até que para muitos possa ser uma espécie de complemento de ordenado. Mas é aqui que começa o problema. É que, apesar de todos sabermos que se pagam salários e que até se recrutam jogadores estrangeiros para os campeonatos distritais, estes não dão receita. Tanto o investimento feito como os gastos correntes para manter o clube a funcionar precisam de ser absorvidos pela quotização paga pelos adeptos da terra em nome do seu sentimento de pertença ou pela rede empresarial local – duas coisas que o Villa não tinha em Ponte de Sor, onde se comprometeu a jogar. Em alternativa, a longo prazo, esse investimento e esses gastos podem ser pagos pela perspetiva de chegar aos campeonatos profissionais. Que, é bom lembramos, são só dois em Portugal: a primeira e a segunda Liga. Ao Villa faltava ainda subir do distrital ao Campeonato de Portugal, deste à Liga 3 e, por fim, à II Liga. Um caminho longo, na melhor das hipóteses de três anos, que em nome da prudência aconselharia alguma parcimónia que os responsáveis do clube nunca demonstraram. Veja-se o que está a fazer – e bem – o Belenenses, um clube com bases, adeptos e tradição, no trajeto de regresso ao topo.
No caso do Villa, haveria campainhas de alarme a soar um pouco por todas as esquinas. Quem escolheu acreditar, do treinador aos jogadores e até ao fotógrafo que saiu “de um almoço de família” para ir documentar o jogo de apresentação, não estranhando ser chamado em cima da hora para o trabalho, tê-lo-á feito também em nome da oportunidade que o seu otimismo viu no empreendedorismo de quem sonha alto. Mas o que este caso nos diz é que é preciso mais controlo, até por parte das associações distritais. Não devia ser possível inscrever uma equipa num campeonato distrital sem ter bases comprovadas na comunidade ou sem mostrar que elas vão ser criadas – que isso do combate à desertificação do interior passaria por viver lá, por treinar lá, consumir nos supermercados e nos restaurantes de lá, e não por ir lá de 15 em 15 dias fazer um jogo. Não devia ser possível pagar a jogadores para participarem num campeonato distrital sem demonstrar claramente a capacidade de o fazer, seja apresentando contratos de patrocínio ou comprovando capacidade de encontrar receita. Este controlo, que se faz nas Ligas profissionais, tem de ser feito também mais abaixo, sob o risco de a subversão desta pirâmide do futebol se tornar a regra.