O exemplo da Premier League
Inglaterra foi o berço do hooliganismo, mas sempre se habituou a conviver com os problemas que vinham de fora do futebol. O que não admite é que eles nasçam no rectângulo de jogo.
Os ingleses estão chocados com os incidentes do Liverpool FC-Manchester City de domingo. Houve – e não necessariamente por esta ordem – cânticos de adeptos do City celebrando as tragédias de Heysel e Hillsborough, graffitis ofensivos pintados na zona dos visitantes, foram atiradas moedas a Pep Guardiola e objetos ao autocarro da equipa do City, quando este saía do estádio, danificando o pára-brisas, e Jürgen Klopp, o treinador do Liverpool FC, foi expulso por se dirigir em fúria ao árbitro auxiliar, depois de este não ter assinalado o que ele julgava ter sido uma falta clara e evidente. Entre o anúncio de inquéritos disciplinares iminentes e as ameaças de afastamento por toda a vida dos estádios dos adeptos declarados culpados deste comportamento, haverá certamente quem se questione: “mas, espera, os ingleses? Não são eles os pais do hooliganismo? Qual é a surpresa?” Foram, de facto, os pais do comportamento desviante associado ao futebol. Sempre souberam ver de onde ele vinha. E o que por lá não se admite é que ele venha de dentro para fora.
O futebol em Inglaterra começou por ser uma coisa de aristocratas, alargou-se às classes mais desfavorecidas ao mesmo tempo que passou a gerar receita capaz de suportar o surgimento do profissionalismo, mas manteve sempre uma ética muito própria da sua génese. A maior parte dos seus heróis sempre veio das classes trabalhadoras, mas quase todos assimilavam aquela forma de estar cavalheiresca – a ponto de haver atualmente quem considere que o comportamento de Klopp, um tipo de classe média alemã que o futebol elevou às camadas mais distintas da sociedade, foi “indigno da sala das chuteiras” de Anfield Road. A sala das chuteiras, “boot room” no original, é a melhor metáfora para explicar a dignidade que o futebol empresta aos seus protagonistas, da base para a elite: foi lá, no refúgio do roupeiro, que Bill Shankly, o mais mítico dos treinadores da história do Liverpool FC, montou uma sala de reuniões informal para discutir táticas e estratégia com os seus conselheiros. E, para quem ainda não viu onde quero chegar, é esse o espírito que o futebol não pode trair, por mais que seja negócio ou indústria – algo que em Inglaterra já é, ainda que num patamar inferior, mas sempre crescente, há um século.
O hooliganismo que os ingleses exportaram para o Mundo a partir do final dos anos 70 nunca teve nada que ver com o futebol – era uma das muitas formas que os elementos da tal classe desfavorecida tinham para se expressar contra as políticas de Margaret Thatcher, o aumento do desemprego e a dificuldade de fazer o dinheiro chegar ao final do mês. Havia quem fizesse greves, quem fizesse música (o punk nasceu daí), quem fizesse manifestações e quem optasse por andar à porrada nos estádios ou ao seu redor – tudo servia como forma de desafiar as autoridades. Esse caráter desafiante, contudo, era sempre exterior ao futebol propriamente dito. E passou a ser bem controlado com a melhoria dos meios à disposição das autoridades, apesar do surgimento de grupos como os nossos “casuals”, que se envolvem em lutas só pela adrenalina da coisa. Mas, à medida que o futebol se transformou em espetáculo de classe média-alta, isso passou a ser globalmente coisa do passado. Já foi anunciado que as câmaras de CCTV permitiram identificar os indivíduos que atiraram moedas a Guardiola e que eles vão ser banidos dos estádios por toda a vida. Essa é uma das formas que o futebol tem de proteger o negócio, a indústria, pois ninguém quer ir em família assistir a um espetáculo que corre o risco de degenerar em manifestação de violência.
Só que isso não chega. O que chocou os ingleses não foram os três energúmenos que atiraram moedas ao treinador do adversário, os cânticos acerca de Hillsborough ou Heysel ou os graffiti nos muros do estádio. O que está a chocar os ingleses é que dentro do exemplo de virtudes que deve ser a Premier League possa haver quem parta para cima de um árbitro como o fez Klopp. “Se os treinadores e os jogadores da Premier League fazem isso, deve estar bem”, disse ao Telegraph de hoje Tom Webb, pesquisador de comportamentos violentos para com os árbitros em vários desportos e em vários países, temendo que esses comportamentos se tornem banais e normalizados. É para isso também que apontam diversas associações de árbitros, como a Ref Support UK. É isso que não pode ser permitido, que seja o futebol a transportar os comportamentos desviantes para fora do retângulo de jogo. E é por isso que, em semana de clássico em Portugal, estou ainda mais curioso com o castigo que a Premier League vai dar a Klopp. A ver se a Premier League é mesmo um Mundo à parte.