O Sporting e o risco no chão
A eliminação da Taça de Portugal, pelo Varzim, da Liga 3, confirmou um Sporting em crise de ideias e com dificuldades gigantescas para manejar um projeto que é de alto risco e não admite equívocos.
![](https://substackcdn.com/image/fetch/w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fbucketeer-e05bbc84-baa3-437e-9518-adb32be77984.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2F6714064f-1dbf-4402-a87c-e9d92c77b570_2048x1638.jpeg)
A eliminação do Sporting na Taça de Portugal, pelo Varzim, da Liga 3, ter-se-á devido a uma série de fatores, entre os quais estará, obviamente, o facto de as boas equipas dos escalões inferiores serem hoje capazes de trabalhar muito bem – veja-se o caso do Caldas SC, que levou o Benfica a penaltis – e o facto de, claramente, o Sporting de Rúben Amorim estar numa crise de identidade desde que se convenceu de que podia trocar o futebol largo que praticava por esta versão pouco inspirada de um jogo marcado pela “small ball”. Rúben Amorim foi incisivo mas ao mesmo tempo enigmático quando disse, no final do jogo de Barcelos, que “a culpa não vai morrer solteira” e, no fundo, é isso que todos os adeptos querem saber neste momento: quem tem a culpa pela transformação de um projeto que parecia ter tudo para se tornar vencedor num caco tão difícil de reconstruir? O ambiente do clube? Os jogadores? O treinador? Ou os dirigentes? Tenho as minhas ideias, mas deixo-vos aqui a explicação para as diversas possibilidades.
Ouvi, aqui há coisa de um mês e picos, uma edição do Spaces Sporting, espaço regular onde estão os meus amigos virtuais Nuno Mourão e Pedro Varela, como ouvi, há menos tempo, uma edição do Spaces Porto, por onde andavam os meus amigos virtuais Francisco Isaac e Miguel Lourenço Pereira – como sou ouvinte de produtos do Benfica Independente, como o Brinco do Batista, dos meus amigos virtuais Sérgio Engrácia e Aires Gouveia. Achei curioso que me tenha incomodado o exercício de autoflagelação permanente que foi aquele Spaces Sporting e que, depois, os organizadores do Spaces Porto tenham justificado no Twitter a dificuldade para levar a cabo um projeto semelhante com algo como – e cito de memória – “a falta de tradição dos adeptos para discutirem o clube em público”. Aqui surgirá desde já quem me diga que isso é mau, porque demonstra falta de cultura democrática, como surgirá quem me diga que é bom, porque se aceita que quem manda, de facto, mande, e assim se caminha em direção ao sucesso. Não temos, contudo, de dizer à partida se é bom ou mau. É o que é. Mas por alguma razão será que os últimos projetos ganhadores que o Sporting montou acabaram por implodir. Aconteceu em 1982 com João Rocha e Allison, repetiu-se em 2000 e 2002 com José Roquette, Inácio e Bölöni e está em risco de voltar a suceder agora com Frederico Varandas e Amorim.
Dir-me-ão os adeptos desta constante exposição dos culpados no pelourinho à espera do justo apedrejamento que a culpa é dos jogadores, que não dão tudo, que não suam a camisola como deviam. Não concordo. Estou mais tentado a alinhar com Amorim, quando o treinador disse que eles se esforçaram, mas simplesmente não estão a ser capazes. Então é culpa do treinador? Sim, também. E não, não é porque joga com três centrais, mesmo que pela frente esteja o Varzim, como aconteceu ontem e também já li escrito por uma série de treinadores de bancada. O Sporting defrontou o Varzim com três defesas, o que é diferente de dizer que o fez com três centrais. Porro (depois Fatawu) e Nuno Santos (depois Jovane) estavam bem na frente. E mesmo entre esses três defesas, pelo menos Matheus Reis foi aparecendo com frequência em zonas avançadas do campo. A culpa do treinador, aqui, não é a de insistir no sistema. É a de permitir que a equipa persista num futebol condenado ao fracasso face à concentração de unidades adversárias na área. Ao Sporting, em Barcelos como em outras situações da época, faltou capacidade de entender que se não tem gente capaz de responder a sucessivos cruzamentos não vale a pena cruzar. O transfer entre treino e jogo não está a funcionar – e sim, isso é da responsabilidade do treinador. Porque se entende que Amorim resolva que não quer um “nove” clássico, mas nesse caso tem de ser capaz de fazer com que a equipa não vá na cantiga dos adversários que lhe fecham o corredor central e baixam o bloco, passando os jogos a cruzar para um jogador que não tem. Não tem de o ter. Não pode é jogar como se o tivesse.
O que está em causa perante a temporada do Sporting, no entanto, é bem mais do que este erro. É muito a noção de que há limites para a ideia que está subjacente ao projeto que esta direção – e esta direção desportiva – pretende montar, e que na realidade só teve sucesso com Amorim e antes falhara com Keizer ou Silas, por exemplo. A ideia de um plantel curto, que permita exponenciar talentos, tem os seus méritos, mas precisa da definição clara de um ponto de não retorno. Se transpõe esse risco no chão deixa de ser corajosa para ser uma loucura. Há que distinguir entre o que é necessidade e o que é pura bravata na venda de jogadores, por exemplo. Entre aquilo que Varandas disse há semanas no Football Talks, que os nossos clubes têm de vender para serem viáveis, e o que tinha dito há anos, quando afirmou que o futebol era “fácil, fácil”. Entre o ciclista que tira as mãos do guiador porque precisa de se alimentar e o que o faz porque acha que já domina de tal maneira a máquina que nem precisa de as ter lá e acaba por se esparramar no asfalto.
O Sporting de 2022/23 parecia bem lançado – eu cheguei a dá-lo como favorito na corrida ao título, por exemplo –, mas depois se percebeu que falhou aspetos fulcrais no planeamento, desde a contratação a peso de ouro de um jogador excelente, mas frágil, como é Saint Juste, que em meados de Outubro ainda não se viu de forma consistente, até à venda de Matheus Nunes – quando não tinha mais nenhum jogador em condições de dar à equipa a capacidade do médio para ganhar metros ou de esticar o jogo. São apenas dois equívocos? É verdade. Há um ano só tinha acontecido um – Vinagre. A opção pela não contratação de João Mário, de forma a exponenciar Matheus Nunes, era arriscadíssima, mas acabou por dar resultado. Um equívoco permitiu fazer uma época de bom nível, mesmo sem revalidação do título. Com dois, num plantel tão curto como este projeto implica que o Sporting tenha, a equipa fica demasiado exposta à necessidade de renovação permanente que ninguém no seu perfeito juízo acha possível. Em Outubro, parece que Varandas e Viana transpuseram o risco no chão e passaram o ponto de não retorno. Restar-lhes-á agora conter os adeptos e recuperar a dose de tranquilidade necessária para permitir que, mesmo a perder, o treinador corrija os seus próprios erros e comece a trabalhar, como ele ontem anunciou, mais novos valores. E fazê-lo com a noção de que foram com demasiada sede ao pote e acabaram por colocar em causa a galinha dos ovos de ouro, porque ou muito me engano ou em 2023 o Sporting não vai ter ninguém para vender. Ora isso é tudo menos “fácil, fácil”.