Tanta ventania, senhores
Só um milagre de Zaccagni, no último lance do jogo contra a Croácia, permitiu a continuação em prova da Itália campeã da Europa. Foi o triunfo do concreto numa equipa cheia de vento e falha de classe.
A Itália pode ser bicampeã da Europa? Pode. Ainda está em prova, salvou-se ontem com um golo aos 90+8’, que lhe permitiu empatar milagrosamente o desafio com a Croácia e, quase de certeza, afastar a equipa balcânica, incapaz de ganhar na melhor das suas exibições. Mas chega a ser um insulto ao espírito das conquistas passadas do futebol italiano agitar essa ideia preconcebida segundo a qual é quando menos se espera que os italianos ganham as grandes competições. Porque é preciso baixar muito a bitola para ver material vencedor nesta seleção comandada por Luciano Spalletti, à qual sobra em disponibilidade física o tanto que lhe falta em classe. Há muito vento, muita gente a correr para a frente e para trás e para os lados, mas vai faltando quem dê a pincelada diferenciada que marcou todas as conquistas da ‘azzurra’. A Itália não tem um dez, um jogador digno da herança de Baggio ou Del Piero, já para não recuar até Antognoni, sacrificado com sucesso ao predomínio das ventoinhas em 1982, ou a Mazzola e Rivera, os dois que em 1970 estavam lá mas eram vistos como incompatíveis na caminhada até à final com o Brasil de Pelé e foram sendo forçados a alternar. Era talento a mais para a “intelligentsia” do futebol italiano. O dez desta equipa é Pellegrini, às vezes Frattesi – e há que ter muito boa vontade para achar que eles estão sequer num Top 100 de jogadores europeus da atualidade ou que alguma vez entrarão numa galeria dos melhores italianos da história. Depois, também lhe falta o “seis italiano”, aquele dez recuado a que por lá chamam “regista”, maestro, jogador de que Pirlo foi exemplo máximo. A Itália já não tinha esse jogador em 1982 e em 2021? É verdade. No Mundial espanhol jogava ali Orialli, um verdadeiro caça-canelas, mas o futebol de então era diferente – e não sobram dúvidas de que aquela equipa ainda muito feita de marcações individuais, de Gentile e de Bergomi, foi salva por Rossi, o ponta-de-lança que a de hoje também não tem. Há três anos, na conquista de Wembley, a meio-campo já lá estavam Jorginho e Barella, esse Tardelli do século XXI. Aí, porém, havia Insigne e um Chiesa mais inspirado do que o de hoje – o extremo foi mais um a fazer a transposição para o lado das ventoinhas, acelerando mais, pensando menos e definindo pior. Esta é uma Itália com uma cultura tática interessante, como se viu na interpretação do 5x3x2 ontem posto em campo, recolhendo Di Marco sem bola e avançando-o com ela, altura em que Calafiori abria na faixa. “Fiz a tese em Coverciano com o 5x3x2”, lembrou ontem na conferência de imprensa Spalletti, enfurecido com as perguntas que sugeriam que tinha metido mais gente atrás por ter medo dos croatas. Esta é ainda uma Itália que conta com um super guarda-redes – e ainda ontem Donnarumma mostrou as qualidades, parando um penalti e um desvio à queima de Budimir, antes da recarga vitoriosa de Modric. Mas é igualmente uma Itália à qual tem faltado o contributo de um ponta-de-lança que Scamacca prometia vir a ser mas não tem sido e que só mostra classe no promissor Calafiori. A jogada do golo salvador, marcado por Zaccagni com um remate em arco difícil e metido num momento de pressão máxima, começou quando o jovem central do Bologna percebeu que tinha de ser ele a empurrar a equipa, a meter esclarecimento no meio daquela ventania toda. Arrancou, de bola no pé, de uma forma pouco ortodoxa, é certo, que os domínios foram sempre sendo feitos no limite da perda, tabelou por dentro com Frattesi e, chegado às imediações da meia-lua, percebeu que tinha atraído a ele toda a equipa croata antes de abrir para Zaccagni. Só não digo que meio golo foi dele porque a finalização do ala foi magistral. O problema é que nos oitavos-de-final, contra a Suíça, não vai haver Calafiori. E aí se verá melhor o material de que é feita esta Itália das ventoinhas.
O desastre croata. Só um milagre pode permitir o apuramento da Croácia para os oitavos-de-final. A importância da vitória de ontem, que se percebia bem na forma como, já substituído, Modric mordia a camisola com os nervos, no banco, percebe-se quando se vê que, com dois pontos e um saldo de três golos negativos, muito dificilmente a equipa axadrezada acabará como um dos quatro melhores terceiros classificados. A Hungria, terceira do Grupo A, acabou com três pontos, da mesma forma que esse será o pecúlio mínimo dos terceiros dos grupos D e E. Para os croatas ainda seguirem em frente seria preciso que nem a República Checa nem a Geórgia ganhem amanhã à Turquia e a Portugal – plausível – e que hoje entre a Dinamarca e a Eslovénia, pelo menos um deles apanhe quatro da Sérvia e da Inglaterra – o que já é mais improvável. Tudo indica que este Europeu será mesmo a última dança de Luka Modric e que acabará de forma inglória para uma equipa à qual falta uma nova geração à altura da antiga, mas que também não consegue levar os seus jogadores mais experientes até ao fim dos jogos, assim perdendo clarividência quando tudo se decide. A Croácia caiu à conta de dois golos sofridos nos descontos, a transformar duas presumíveis vitórias, contra a Albânia e a Itália, em dois empates. O de ontem, já sem Modric, Kovacic ou Kramaric em campo, é ainda mais difícil de explicar, por ter surgido numa finalização de um jogador vindo da esquerda do ataque italiano que estava completamente à vontade, apesar de se viver uma fase do jogo em que os croatas já tinham dois laterais direitos em campo – a Stanisic juntara-se Juranovic, para fechar melhor aquele lado.
Acabou a loucura dos golos. Já se presumia que iria acontecer isto. Durante duas jornadas, embriagadas com as facilidades de qualificação – seguem para os oitavos-de-final 16 das 24 equipas presentes –, as seleções entregaram-se a um futebol ofensivo e vistoso. Resultado: 34 golos na primeira jornada, 27 na segunda, a uma média de 2,54 por jogo. Chegou a última jornada, aquela em que tudo se decide, em que toda a gente começa a fazer contas, em que os já apurados abrandam para se pouparem para os oitavos-de-final, e o jogo muda. Os quatro jogos já realizados desta terceira ronda tiveram seis golos (1,50 por desafio), três dos quais já depois do minuto 90. As emoções têm sido grandes, mas o que manda mesmo, nesta altura, é a calculadora.
Entrelinhas
Calafiori, le bizut italien à forte personnalité, análise de Dan Perez, no L’Équipe, à importância do defesa-central no jogo de Itália.
Goodbye Luka Modric? This was tournament football at its most brutal, é um artigo de Tim Spiers, no The Athletid, acerca do que pode ter sido a despedida de Modric de uma fase final.
Gol meraviglioso, ma serve il pressing, análise de Arrigo Sacchi ao empate da Itália contra a Croácia, na Gazzetta dello Sport.
Demasiadas hogueras, crónica de Manuel Jabois, no El País, sobre a vitória de Espanha sobre a Albânia e “uma geração de jogadores que não estão sequer em idade de trabalhar”.
Sesko’s freakish physical threat gives England giant headache, artigo de Sam Dean, no The Telegraph, acerca dos pontos fortes da Eslovénia, que hoje defronta a Inglaterra.
Ghost of Lineker shows Southgate that it is never too late to change, crónica de Barney Ronay, no The Guardian, acerca do que a Inglaterra precisa de fazer para se tornar candidate.
Ménagé, pas em danger?, artigo de Hugo Delom, Damien Degorre e Loïc Tanzi, no L’Équipe, sobre a possibilidade de Griezzmann ser suplente estando apto na seleção francesa.
Grillitsch: “El que más me impresiona es Kroos”, entrevista de Abraham P. Romero ao médio da seleção austríaca, no El Mundo.
Tout um symbole, artigo de Bernard Lions, no L’Équipe, acerca da forma como Memphis Depay simboliza a ineficácia da seleção neerlandesa.
Dutch football supporters and a tradition that divides the Netherlands, é um artigo de Jacob Whitehead, no The Athletic, sobre a polémica causada na Holanda por adeptos disfarçados de Gullit
Compattezza e blocco Bologna, così la Svizzera pensa all’italiana, análise de Pierfrancesco Archetti à seleção da Suíça, próximo adversário da Itália, na Gazzetta dello Sport
Wirtz y Musiala, jugadores para uma década, análise de Philipp Lahm, no El País, acerca da nova geração do futebol alemão.
O que tem achado das prestações da Austria e da Dinamarca? Surpresa só para alguns....
A Itália de 2024 é a mais chata que vi jogar e parece-me que a Itália insiste num jogo que não se adequa aos jogadores que tem. Sei que o Tadeia não gosta de criticar a arbitragem mas o jogo durou até a Itália empatar, 8 minutos de compensação com que fundamento?