O problema de Anselmi
Anselmi perdeu a batalha com Lage, da mesma maneira que o clássico provou que os jogadores do Benfica são hoje superiores aos do FC Porto. O problema do argentino é que isso pode não lhe chegar.

Palavras: 1399. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Há muitos pontos de contacto entre o que está a ser vivido por Ruben Amorim em Manchester e aquilo por que passa Martín Anselmi no Porto. São dois treinadores jovens, de discurso tão sedutor que é capaz de levar a crença aos adeptos e suscitar a admiração dos observadores. Ambos chegaram a meio da época e tentaram impor um sistema e uma ideia de jogo diversa da que por lá vigorava, em planteis que não estavam preparados para ela, debaixo do pretexto de que estão a ganhar tempo para a próxima época, como se esta fosse uma espécie de meio-ano zero. Ambos estão muito aquém das expectativas, mas já viram os responsáveis dizer que só serão julgados na nova temporada, quando se resolverem todos os problemas estruturais que lhes afetam o presente. Há, depois, uma grande diferença: só um dos dois viu o presidente justificar a saída do antecessor com uma “quebra de confiança” nele por parte do grupo, que foi Anselmi. O problema no futuro de Anselmi não é não ter alinhado na resignada meia-volta ao relvado que alguns jogadores insistiram em fazer, como se se autoflagelassem após os 4-1 que apanharam do Benfica. O problema no futuro de Anselmi é a razão pela qual o FC Porto se livrou de Vítor Bruno e a renitência de André Villas-Boas em admitir que com o novo técnico vem também uma nova forma de ver a realidade.
É fácil ver em Anselmi o Ruben Amorim do FC Porto. Ambos deram uma pedrada no charco à chegada, adotando sistemas diferentes e desarmando os jornalistas com abertura total na dissecação das questões táticas das suas equipas. Uma abertura à qual, pela primeira vez, o argentino fugiu ontem, quando repetiu, primeiro na flash interview e depois na conferência de imprensa, que não queria estar ali a fazer a desmontagem daquilo que lhe correra mal na derrota contra um Benfica que nem quis a bola senão para lhe causar dano. De resto, Amorim perdeu os dois clássicos que disputou na primeira meia-época no Sporting – e até tinha beneficiado de uma pré-temporada improvisada, à conta da interrupção da Liga pelo Covid. Mais: na primeira temporada que fez de início em Alvalade, ainda à sombra protetora do “E se corre bem?” mas ainda sem ter tido tempo para rechear o grupo com aquisições capazes de servir o seu futebol, apanhou 4-1 em casa e nem foi de uma equipa de Liga dos Campeões, como o Benfica. Foi do LASK Linz, uns modestos rapazes austríacos que privaram o primeiro Sporting de Amorim da entrada na Liga da Europa. Mesmo assim, manteve a ideia e, mesmo com um cabaz de miúdos, de Inácio a Nuno Mendes e Tiago Tomás, foi campeão uns meses mais à frente.
Estará Anselmi nesse ponto, na viragem de Linz, aquela curva feita a acelerar e com o piso molhado, em que as coisas podem correr bem ou mal? Depende. E façamos aqui a transição para o Amorim de hoje, o do Manchester United. O treinador português justificou a saída do Sporting e a entrada em Old Trafford com o facto de querer aquele contexto em específico, o contexto de dificuldade que já tinha encontrado à chegada a Alvalade. Esperávamos todos – e creio que ele acima de nós – que as coisas lhe corressem melhor de entrada, mas o United tarda em arrancar. É 13º classificado na Premier League, a 13 pontos de uma posição europeia, que só alcançará se ganhar a Liga Europa. E já perdeu desde Novembro tantas vezes (dez em 30 jogos) como nas primeiras 90 partidas no Sporting. A 11ª derrota de Amorim nos leões aconteceu ao 91º jogo, a duas semanas de ali completar dois anos de trabalho. Terá ele o lugar em risco? É difícil imaginar que ele não esteja lá no início da próxima época, porque já foi assumido por Jim Ratcliffe, o homem que manda no futebol do United, que o que está ali em causa é uma necessidade de mudar tudo. Mas não é disso que se trata também no FC Porto? Devia ser. Só que os portistas, tanto os que ontem saíram das bancadas imediatamente após o terceiro golo de Pavlidis como os que por lá ficaram, continuam em suspenso, à espera de stories que Sérgio Conceição venha a publicar com frases de Pedro Chagas Freitas. Muito dos que por lá ficaram estoicamente até ao fim continuam a achar que, após uma derrota como a de ontem, o plantel deve submeter-se ao exercício tortuoso que é estar ali parado, cabeça baixa, em ato manifesto de submissão à bancada – e por isso há líderes de balneário que arrastam os colegas para isso. E o próprio André Villas-Boas teme tanto a rotura, seja com o legado de Pinto da Costa como com o de Conceição, que nunca pôde assumir que o que está ali em causa é a tal vontade de fazer tudo diferente.
Aqui há pouco mais de uma semana chamei a vossa atenção para o complicado exercício de equilibrismo que é exigido ao presidente, que numa mesma entrevista falou em “ano zero” mas deixou implícito que Conceição não ficou por vontade própria, porque tinha uma ligação forte ao presidente anterior e um contrato demasiado oneroso para o clube. Não saiu, como Erik Ten Hag do United, porque o clube quis fazer tudo diferente. Depois – mais equilibrismo... –, ao mesmo tempo que garantia Anselmi para 2025/26, justificava a saída de Vítor Bruno com a perda de confiança nele por parte dos jogadores. A questão colocava-se a si mesma: e se os jogadores, até final da época, perderem a confiança em Anselmi? O jogo de ontem, tal como defendi na crónica analítica (a ler aqui) foi um misto entre a impreparação estratégica do novo treinador, superado nesse aspeto por Bruno Lage, com a inadequação destes jogadores à sua ideia e à sua estrutura tática e, creio que fundamental, com o défice de qualidade do plantel, repleto de elementos que no máximo seriam razoáveis segundas opções. O FC Porto fez um bom final de mercado de Verão, podia até ter encarreirado nessa altura para uma temporada minimamente conseguida, depois de ter começado a Liga como o claramente mais débil dos três candidatos, mas ficou bem mais fraco com as opções tomadas em Janeiro, no seguimento das perdas não compensadas de Galeno e Nico González.
É mais ou menos consensual que atrás da contratação de Anselmi havia toda uma vontade, uma necessidade, mesmo, de fazer tudo em rotura: comunicação aberta em vez de balneário fechado, alegria em vez de espírito de luta contra tudo e contra todos... Tudo em nome de uma necessidade de crescimento para fora das fronteiras que o clima anterior dificultava. Eventualmente, aquilo que Anselmi vê na derrota, a necessidade de recolhimento para análise posterior, é diferente do que ainda manda fazer o DNA do clube, o tal exercício de humilhação pública face aos verdadeiros donos do clube, que são os adeptos mais fiéis, os que lá ficam mesmo a perder por 4-1. “Ave Caesar! Morituri te salutant!” [“Viva, César! Os que vão morrer saúdam-te”], gritavam na arena os gladiadores para o imperador romano. Ontem, após o jogo, na conferência de imprensa de Anselmi, houve um momento estranho, em que um jornalista perguntou ao treinador porque tinha abandonado os jogadores, deixando-os sós no final da partida quando eles enfrentavam o tribunal. Respondeu o argentino: “Eu?! Mas eu estive lá!”. Tive a curiosidade de ver as imagens e, de facto, Anselmi parece estar no relvado ao mesmo tempo que se dava a submissão, mas não fez com os jogadores a tal excursão às capelinhas, a meia-volta ao campo que foi um misto de pedido de desculpas com aceitação daquilo que de lá viesse, o polegar para cima ou para baixo que lhes permitisse saberem se merecem ver uma nova batalha.
É um detalhe? Não é um assunto importante? Não é, de facto. Mas é sintomático da forma como o clube vê o futuro. E se há um problema no futuro de Anselmi, é a possibilidade de não haver sintonia na forma de o encarar.
Uma das questões de fundo para o futuro será, vai manter o sistema de 3 centrais?! Se sim significa que os jogadores contratados no futuro ( com 2/3 anos de contrato) a equipa ficará "presa" a esse sistema que no porto só foi utilizado por Adriaanse. Ou volta atrás, assume o erro....