O poder da identidade
Este já não é Shakhtar ucraniano-brasileiro que maravilhava. É uma equipa sem estrelas, baseada na identidade e orgulho nacionais. Surpreendeu o RB Leipzig. Mas será suficiente daqui para a frente?

A goleada (4-1) infligida na Alemanha ao RB Leipzig pelo Shakhtar Donetsk foi a surpresa do primeiro dia de Liga dos Campeões de 2022/23. Os ucranianos tiveram a sorte do jogo, numa daquelas noites de encontro com a história que não acontecem frequentemente, mas ainda atravessam uma situação extraordinariamente difícil, que leva a que seja complicado antever que possam vir a qualificar-se, num grupo que além dos alemães tem ainda o Real Madrid e o Celtic Glasgow: perderam jogadores e treinadores, estão só agora a voltar ao ativo após seis meses sem competir e, nos jogos do recentemente reiniciado campeonato ucraniano, entram em campo na perspetiva de terem a qualquer momento de recolher a um abrigo em caso de ataque aéreo.
Quem se lembra do Shakhtar Donetsk pré-guerra lembrar-se-á de uma equipa multinacional, comandada pelos milhões de Rinat Akhmetov, o dono da System Capital Management, que transformou o clube no orgulho do Donbass. Ainda ontem, proibido pela UEFA de usar na camisola o símbolo da United 24, a organização fundada pelo presidente ucraniano Volodymir Zelensky para recolher donativos que ajudem a resistir à agressão russa, o Shakhtar voltou a usar o equipamento com o logotipo da SCM. Akhmetov pegou no Shakhtar em 1995, após o assassinato, num atentado à bomba, do presidente Akhat Bragin, figura da máfia local de quem ele era próximo. Até então, os mineiros só tinham ganho três taças da URSS. Após uma delas, aliás, tinham sido depois eliminados pelo FC Porto, na caminhada dos dragões até à final da Taça dos Vencedores das Taças de 1984. Com Akhmetov, tudo mudou. O Shakhtar ganhou 13 campeonatos da Ucrânia e uma Taça UEFA, em 2009.
A equipa que se impôs no panorama europeu atacava com o samba brasileiro e defendia com o rigor da Europa de Leste. Lá pontificavam Wyllian, que depois chegou ao Chelsea, Luiz Adriano, que depois jogou no Milan, Fernandinho, depois estrela do Manchester City, mas também vários internacionais ucranianos, bem como o croata Srna – hoje diretor desportivo do clube – e o romeno Rat. A comandá-los, estava o romeno Mircea Lucescu, cujo fracasso na tentativa de levar o Dínamo Kiev à atual fase de grupos da Liga dos Campeões, associado à debandada geral de estrangeiros do plantel do Shakhtar – um deles o atual benfiquista Neres – e ao facto de só muito recentemente terem recomeçado a competir, fazia prever enormes dificuldades para os ucranianos em geral nas provas europeias.
Interrompido em Dezembro para a normal pausa de Inverno, o campeonato ucraniano não chegou a recomeçar em Março, porque entretanto começara a guerra. A batalha pela suposta normalidade começou a ser travada em finais de Agosto, quando o Shakhtar empatou a zero com o Mettalist Kharkiv, em desafio disputado em... Kiev. A Federação vai marcar os jogos da Liga de 2022/23 jornada a jornada, para locais a designar, com uma obrigatoriedade: têm de ser disputados em estádios que tenham nas proximidades abrigos anti-aéreos e poderão ser interrompidos a qualquer momento. Dois dos três desafios já disputados pelos laranjas foram em Kiev e o outro em Lviv, precisamente o local onde a equipa passara a jogar em 2014, após a intervenção russa no Donbass e o bombardeamento da ultra-moderna Donbass Arena, que tinha sido construída para o Europeu de 2012.
Viver na estrada não é uma novidade para o Shakhtar. Depois de Lviv, cidade que teve de abandonar devido à animosidade dos ultras do Karpaty, clube local associado ao Dínamo Kiev, o clube passou a disputar os seus jogos em Kharkiv, cidade no leste da Ucrânia, que fica só a 300 quilómetros de Donetsk. E o plantel multinacional, que chegou a ser comandado pelos portugueses Luís Castro ou Paulo Fonseca, estava instalado em Kiev, que nessa altura era uma capital segura. Quando deixou de o ser, os estrangeiros começaram a ir embora. De Zerbi, o treinador italiano que substituiu Fonseca no Verão de 2021, saiu na última Primavera, quando se percebeu que o campeonato nacional não ia mesmo continuar. No Verão, foi um ver-se-te-avias para colocar jogadores sem perder muito dinheiro. Neres chegou para o Benfica, que viu assim saldada a dívida do Shakhtar por Pedrinho. Dodô seguiu para a Fiorentina por 14,5 milhões de euros, o ex-Estoril Marcos António para a Lazio por sete milhões e meio, o antigo sportinguista Fernando para o RB Salzburgo, por seis milhões... E muitos o Shakhtar só pôde colocá-los por empréstimo: Ismaily (ex-Estoril, Olhanense e SC Braga) no Lille OSC, Pedrinho (ex-Benfica) no Atlético Mineiro, Marlon no Monza, Solomon no Fulham FC. A equipa estava mais fraca e para a comandar chegou o croata Igor Jovicevic, que na época passada treinava o Dnipro e anteriormente já tinha trabalhado no Karpaty Lviv.
O Shakhtar que se impunha na Europa pela sua identidade ucraniano-brasileira só tinha ontem um sul-americano na equipa: o lateral brasileiro Lucas Taylor, outro que já andou nos sub23 do Estoril. De resto, o onze inicial era composto por dez ucranianos. Do banco, ainda saíram o croata Djurasek e o burkinabé Traoré, autor do quarto golo. Mas a história do Shakhtar faz-se agora de gente como Maryan Shved, um extremo ucraniano que chegou no último dia de mercado depois de ter andado pelos juniores do Sevilha FC, de ter fracassado no Celtic e de ter passado dois anos razoáveis no KV Malines, da Bélgica. Tinha-se estreado jogando apenas um minuto no 1-0 ao Rukh, na sexta-feira passada, e agora fez dois golos na vitória frente ao RB Leipzig. Aos 25 anos, nunca gerou transferências acima dos dois milhões de euros que o Celtic pagou por ele em 2019. Ainda agora chegou da Bélgica por um milhão, aproveitando a oportunidade para jogar naquela que é a maior potência desportiva do futebol ucraniano e para fazer a sua parte na solidificação da identidade nacional. Já se sabe que o patriotismo faz milagres. A dúvida é saber se chega para o sucesso na Liga dos Campeões.