O papel de Martínez
Continuamos a avaliar Martínez pela forma como explica escolhas que, a quem pensa diferente, parecem incongruentes. O erro está na premissa. O selecionador não tem de ser avaliado pelas justificações.

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Vamos assumir aqui que o papel de um selecionador nacional não é o de explicar as coisas às pessoas – porque se fosse, Roberto Martínez tinha esta semana voltado a ficar muito aquém, com a gestão pública que fez do caso Pote, Matheus Nunes e Samu. Mas não é. O papel de um selecionador nacional é montar uma equipa que ganhe jogos, de preferência a jogar bom futebol e a juntar em volta dela boa parte dos adeptos do país, independentemente do clube em nome do qual dizem as maiores barbaridades nas semanas em que há campeonato. Antes dos dois últimos desafios da fase de grupos da Liga das Nações, a missão fundamental está a tempo de ser salva. Mas até o facto de as quatro jornadas iniciais nos valerem a liderança do nosso grupo – e não é possível ser melhor do que primeiro... –, mas com períodos de ocaso perigoso a juntar a outros de brilhantismo entusiasmante, leva a que a segunda parte dessa missão, a de juntar os adeptos em volta da equipa, seja o que estará em causa já hoje (19h45, RTP1), no Dragão, na receção à Polónia. E que seja mais por aí do que pela classificação que o resultado permitir – até podemos ser primeiros já hoje com um ponto, se a Escócia ganhar à Croácia – que será avaliado o selecionador.
Há uma coisa que torna o caminho de Martínez válido. Ele podia ser uma máquina a justificar escolhas – e, pelo menos em português, não é, nem pouco mais ou menos – que isso não lhe serviria rigorosamente de nada. Haveria sempre quem não se deixasse convencer, quanto mais não seja porque tem opiniões diferentes. É assim a vida de quem quer que tenha de se explicar publicamente na era do predomínio das redes sociais. Veja-se agora o que se passará com a escolha do substituto de Rúben Dias para o centro da defesa. Quem acredita na seleção enquanto uma entidade que exista para lá da rotina dos clubes aceitará a escolha de António Silva, que tem mais experiência ali. Quem a vê como um mero prolongamento daquilo que se passa nas jornadas da Liga não aceita a ideia de que Silva possa ser titular à frente do jogador que lhe roubou o lugar no Benfica, que é Tomás Araújo. A parte boa da polémica é que vem desmontar as teorias da conspiração que se criam à volta do papel do selecionador. Se ele só convocava António Silva para o valorizar em nome de uma futura venda, para favorecer o jogador, o clube ou o seu agente, então agora devia dar primazia a Tomás Araújo, que nenhum dos tubarões do tanque global vai preferir um suplente a um titular quando abrir a carteira. Nem isso chegará para convencer os contestatários de que não, os selecionadores não estão ali a servir interesses de ninguém a não ser os deles mesmos e que simplesmente operam de acordo com as suas próprias convicções, necessariamente diferentes das nossas, porque são pessoas diferentes de nós. De nada lhes serve explicarem melhor ou pior as escolhas, que quem concorda vai continuar a concordar pacificamente e quem discorda vai continuar a discordar ruidosamente.
E voltamos ao início da conversa. A única forma de um selecionador garantir que faz bem o seu papel é, primeiro, ganhar, e depois ganhar de forma convincente. Portugal era, à entrada para esta quinta jornada da Liga das Nações, uma das equipas que melhores resultados vinha apresentando. Tinha 10 pontos, como a Itália – que ontem subiu para 13 –, a Alemanha e a Espanha. Podíamos somar 12, se tivéssemos ganho à Escócia em Glasgow, no que foi o nosso pior jogo? Sim, é verdade. A visita às terras altas ficou marcada por um dos períodos de ocaso da seleção nacional, a impedir a concretização da segunda parte da tarefa de Martínez. Foi o jogo na Escócia, como tinha sido a segunda parte da receção à Croácia, quase toda a partida em casa contra os escoceses e ali uns minutos na Polónia, a antecipar a redução da vantagem que tínhamos feito por justificar e a pôr em risco o resultado. Depois, há que reconhecê-lo, a equipa também teve períodos brilhantes, nomeadamente as primeiras partes contra a Croácia na Luz e contra a Polónia em Varsóvia. E, aqui é que está o problema, não é possível identificar claramente razões para estas flutuações nas diferentes escolhas do selecionador. Há algumas constantes, como a presença de um defesa-central canhoto, a melhorar a saída de bola – foi Inácio contra a Croácia e Veiga contra a Polónia –, ou de um médio-centro ágil na distribuição – Vitinha com os croatas e Rúben Neves com os polacos. Mas a equipa também jogou assim nos períodos em que pôs esses dois jogos em risco. E se nem nós conseguimos explicar o que se passou, não vamos esperar que seja Martínez, com as suas contradições permanentes entre o que sabe e o que nos diz, a fazê-lo.
Os jogos contra a Polónia e a Croácia – este na segunda-feira, também às 19h45, na RTP1 – vão servir para vermos uma série de variáveis. Sem Rúben Dias e Gonçalo Inácio, que serão atualmente os jogadores melhor posicionados para se assumirem como titulares, poderemos avaliar a profundidade da posição de defesa-central, com António Silva, Tomás Araújo, Renato Veiga e Tiago Djaló à espera de convencerem. Sem Palhinha se verá se Martínez será mais fiel ao que disse na conferência de imprensa após anunciar a lista, assumindo que quer ter ali um médio mais forte com bola, ou ao que disse quando perdeu Pote e Matheus Nunes e voltou atrás na convocatória de Samu, jogador mais impactante no estabelecimento de equilíbrios defensivos. Sem Gonçalo Ramos e Diogo Jota, veremos até que ponto é que a resistência que o selecionador tem mostrado à chamada de outros jogadores para a posição – Paulinho marca como respira no México mas continua de fora – pode ser justificada com a opção por um falso nove, que seria Félix, única forma de dar minutos de repouso a Cristiano Ronaldo, o ponta-de-lança solitário desta lista. No fim valerão os resultados alcançados, a obtenção ou não do primeiro lugar, e as sensações que os jogos nos provocarem. Porque se estivermos à espera das explicações de Roberto Martínez, o mais certo é termos de esperar confortavelmente sentados, porque cada vez mais se percebe que ele acha que esse não é, de todo, o seu papel.
O que se passa no clube, se é titular ou suplente, se está em boa ou má forma, não pode se forma alguma passar despercebido nas escolhas do treinador. Isso não faz da seleção uma extensão do clube, mas não pode também ser ignorado. É pelas explicações que podemos entender a forma de pensar do treinador e o porquê de escolher este ou aquele e não o outro. Se não consegue explicar, se não faz sentido, percebemos que o critério não faz sentido, até pelas escolhas, sem as explicações se percebe que Martinez não tem critério.