Os treinadores na luta de classes
Tal como Amorim há anos, João Pereira não tem a qualificação necessária para dirigir o Sporting. Vêm daí a contestação e a hipocrisia, quando todos ganhariam em olhar para o que é mesmo importante.

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Está a chegar outra vez a altura em que os sportinguistas se revoltam contra a Associação Nacional de Treinadores de Futebol por uma razão muito simples: esta vai pelo menos fingir que está a exigir o cumprimento de uma lei que, em condições normais, impediria os leões de designar João Pereira como treinador principal, por falta de qualificação académica. A mim também me dava jeito que os potenciais leitores que andam por aí em todas as redes sociais só pudessem ler artigos vindos de jornalistas encartados, mas ao fim de alguns anos a viver submerso por blogues engajados ou enganadores, que dão muito mais canal, desisti da ideia – não do jornalismo – e o que fiz foi desencartar-me também. Nos treinadores a coisa pia mais fino. A desregulação é total, mas não deixa de ser curioso que cada lado olhe apenas para os seus interesses e nunca para o panorama global. A muitos dos que agora se revoltam com as ações da ANTF terá passado pela cabeça a ideia de que o mercado dos treinadores deveria ser regulado como o dos jogadores, quanto mais não fosse para que o Manchester United não tivesse podido vir buscar Ruben Amorim a Alvalade num momento tão complicado. Mas não perdem um segundo a pensar no que vive atualmente Daniel Sousa, treinador despedido do SC Braga em Setembro, ainda envolto numa batalha legal com o clube que entretanto seguiu a sua vida com Carlos Carvalhal.
O caso João Pereira é tão fácil de explicar como de tornear. O novo técnico principal dos leões frequenta o terceiro nível do curso de treinadores e só depois de o concluir poderá inscrever-se no quarto, o UEFA Pro, que é imprescindível para liderar uma equipa de primeiro escalão em qualquer país europeu. Não é um capricho da ANTF ou do seu presidente, José Pereira. É uma exigência da UEFA, que dessa forma até dá a ideia de querer impor algumas regras no setor. O que depois fica mais complicado é fazer os níveis necessários, porque as vagas para se chegar ao topo são limitadíssimas. Os ‘numerus clausus’ para os treinadores são ainda mais opressivos do que os dos candidatos a cursos de medicina, o que no caso de Amorim o levou a fazer os primeiros patamares em Belfast, de maneira a dar o necessário empurrão à carreira. João Pereira não poderá habilitar-se a entrar no quarto nível em Maio de 2025, que é quando a FPF formará novas turmas, porque em Portugal se exigem dois anos de trabalho depois de ter o terceiro. Só nessa altura, provavelmente em 2026, poderá ser, de jure, treinador do Sporting – ou de qualquer equipa da I Divisão. E até lá? Até lá, pode fazer tudo o que faz o treinador principal com a exceção da comparência às flash-interviews e da inscrição do nome na ficha de jogo. Mais: também não lhe convém dar muito nas vistas quando tiver de gritar instruções aos jogadores, porque senão daí virão multas. O que, dado o caráter extraordinariamente mediático da sua missão, é tão certo como o são os impostos ou a morte.
No fundo, a lei não impede a esmagadora maioria das ações próprias do que é ser treinador. O treinador não encartado pode definir e orientar os treinos, pode liderar os jogadores por toda a semana, pode escolher o onze, a tática, a estratégia e as substituições, pode coordenar o mercado com o departamento de scouting e a administração, pode até dar as conferências de imprensa antes e depois dos jogos. Só não pode é levantar-se do banco enquanto estes decorrem, gritar instruções de maneira a que o ouçam e explicar-se nas flashes, que é o que vê a maior parte dos telespectadores. E aos que perguntam porque é que é assim só pode ser dada uma resposta: porque estas são as únicas partes do trabalho dele que são escrutináveis. Basta perceber que Pereira poderá estar nas conferências de imprensa antes e depois dos jogos da nossa Liga mas não nas da Champions, que são reguladas como parte do desafio. E, quanto ao resto, como é que se pode impedir alguém de ministrar um treino atrás de portas fechadas? Ou proibir alguém de escolher um onze e definir uma estratégia para um jogo ou para o ataque ao mercado? Alguém sabe, por sinal, quem é que os definiu? No fundo, aquilo que o Sporting se prepara para fazer explica a razão pela qual é impossível regular o mercado dos treinadores, impedindo, por exemplo, que um colosso como o Manchester United venha a Lisboa buscar alguém como Amorim a meio de uma tarefa. Por muitas vezes, mais do que as que quereria, já ouvi sugestões como as de se impedir os clubes de inscrever um treinador novo a não ser em determinadas alturas do ano, como se faz com as janelas de mercado para os jogadores, ou de se proibir um treinador que tenha trabalhado num clube numa temporada de assinar por outro antes do seu final. Mas de que serviriam essas limitações se depois elas seriam tão facilmente torneadas? O Manchester United não podia inscrever Ruben Amorim como técnico agora? Tudo bem: entrava como roupeiro e apresentava como diploma quatro anos e meio de aprendizagem com Paulinho.
Esta constatação é a que me leva a achar que a lei imposta pela UEFA à ANTF a propósito das limitações dos cargos de primeiro escalão a treinadores que tenham o quarto nível não faz um pingo de sentido. Já sei que podem atirar-me com coisas efetivamente mais graves, como a necessidade de se ser cirurgião encartado para operar – mas aí há um ato prático facilmente definível – ou de se ser arquiteto ou advogado inscrito na respetiva ordem para poder assinar um projeto ou uma ação – e aí há responsabilidade cível ou criminal a impender sobre quem subscreve. A profissão de treinador exige formação, como é evidente. Mas nem é claro que a formação tenha de chegar por uma via, chamemos-lhe assim, oficial, nem me parece que dela resulte inevitavelmente a capacidade para desempenhar um cargo melhor ou pior. Amorim, por exemplo, foi campeão nacional antes de concluir o quarto nível – e há muitos treinadores altamente qualificados que depois não têm aproveitamento onde ele é crucial, que é dentro de campo. Sempre que penso no tema e o cruzo com o lavar de roupa suja que tem estado a sair dos comunicados e contracomunicados do SC Braga e Daniel Sousa, o treinador que foi demitido pelos minhotos um par de meses depois de ter sido contratado, dou comigo a questionar as razões pelas quais nem a UEFA nem as associações de classe, como a ANTF, atacam onde seria mais razoável fazerem-no, que era no impedimento da inscrição de um novo treinador por parte de clubes que ainda não tenham cumprido todas as obrigações contratuais com aquele que acabam de despedir. E não quero acreditar que seja porque assim estariam a limitar o acesso ao emprego a quem depois neles acaba por votar.
A profissão de treinador é essencialmente uma profissão de conhecimentos técnicos, muito mais próxima de um sapateiro ou um operador de caixa ou um rececionista, com todo o respeito e valor dessas profissões, do que de um advogado, um juiz, um médico, um enfermeiro, um arquiteto ou um engenheiro. Exigir que um cidadão que passou 20 anos no futebol sénior, mais 10 anos no futebol de formação, que aprendeu várias funções, várias formas de trabalhar, assistiu a várias formas de comunicar, que aprendeu com treinadores como Camacho, Ulisses Morais, Paulo Alves, Jorge Costa, Jorge Jesus, Domingos Paciência, Paulo Bento, Paulo Sérgio, Sá Pinto ou Pellegrino, entre outros, precisa de um curso de treinador de futebol, é um absurdo sem tamanho. A formação ajuda, mas só é necessária quando vimos de fora do futebol.
A ANTF está a fazer como muitas vezes faz o sindicato dos jogadores de futebol, a preocupar-se com o que não devia em vez de fazer o seu trabalho.