O Newcastle anti-saudita
O Newcastle United dos sauditas é a menos saudita das equipas da Premier League. E se foi neste paradoxo que fundou o crescimento, será nele também que encontrará o seu princípio de Peter.
Quando o fundo soberano da Arábia Saudita comprou 80 por cento do Newcastle United ao odiado Mike Ashley, a condenação foi geral: estávamos perante mais um caso da utilização do futebol para a lavagem da imagem de um estado autocrático no mundo ocidental. Ao mesmo tempo, a situação gerou reação imediata dos adeptos locais, alguns dos quais se manifestaram junto ao estádio de keffiyeh na cabeça, a defenderem o direito a sonhar com luxos que viam noutros grandes clubes: “Se o Manchester City pode, se o Paris Saint Germain pode...” Esse não foi o caminho, no entanto. Depois de ter aproveitado a injeção de capital para fugir, na época passada, a uma despromoção que parecia certa, o Newcastle United garantiu ontem, com um empate com o desesperado Leicester City, a presença na próxima Liga dos Campeões, na qual não figurarão o Tottenham, o Chelsea ou, quase de certeza também, o Liverpool FC. Mas fê-lo através da afirmação de valores contrários aos da ostentação que muitos esperariam depois da chegada dos novos donos de bolsos sem fundo. Se há coisa que a equipa de Eddie Howe demonstrou foi precisamente o valor do trabalho e o custo do dinheiro, que não nasce nas árvores nem muito menos repousa nos poços de petróleo. O dia-a-dia de St. James’ Park não viu sessões fotográficas de craques de dimensão mundial. Ao contrário do que muito se especula, não acredito sequer que por ali apareça na próxima época Cristiano Ronaldo, que já tem contrato com o mesmo patrão, mas é para jogar nos relvados de Riade e arredores, com treinadores que pensam primeiro na conta bancária e depois na construção de equipas reais. Reais de realidade, não de realeza. Este Newcastle United chega a ser um aborrecimento, que não brilha por nenhuma razão a não ser pelos efeitos da transpiração na pele dos jogadores mais gregários. Não é equipa de Messis, Ronaldos ou Neymares, mas de Joelintons, Botmans ou Schärs. Admite a inspiração de gente como Isak ou Guimarães, a consistência de Wilson, mas se queremos ver mesmo transcendência é mais provável que a encontremos na arte de Pope negar golos aos adversários ou na forma coordenada como a equipa se move em pressão defensiva. Não foi certamente por acaso que o Newcastle United celebrou em antecipação o hino da Champions com um 0-0: a equipa tem a segunda defesa menos batida da Premier League, com mais um golo que a do Manchester City, mas apenas o quinto melhor ataque, com menos 26 golos marcados do que os citizens. E a questão não é tanto a de se saber quanto é que os sauditas poderão investir para a próxima temporada ou quanto é que as regras do fair-play financeiro lhes permitirão meter no reforço da equipa como é a de se perceber quem é que Eddie Howe admite no grupo de forma a manter o balneário unido em torno de uma ideia de solidariedade que tem zero a ver com a forma de vida saudita. O Newcastle United dos sauditas é a menos saudita das equipas da Premier League. E se foi neste paradoxo que fundou o crescimento, será nele também que encontrará o seu princípio de Peter. Porque este também não é um Newcastle United de Champions. E o confronto com a realidade pode ser duro já em 2023/24.
Tira os pontos, mete os pontos. A gestão que a Serie A italiana está a fazer do caso Juventus faz lembrar aquela cantiga marota do Quim Barreiros acerca da “garagem da vizinha”. Ora tira pontos, ora mete pontos, ora volta a tirar. Já me parece indefensável que os pontos ganhos em campo por jogadores e treinadores possam ser retirados por irregularidades financeiras cometidas pelos fatiotas que se sentam nas tribunas. Sim, sei bem que com o dinheiro que as administrações surripiam a outras atividades se constroem equipas ou que as classificações finais se refletem em qualificações para provas que são mais ou menos dinheiro, mas esta não pode ser a maneira correta de castigar os crimes. Muito menos se, como aconteceu em Itália esta época, isso leva a que se mudem as regras. Queixa-se Mourinho, com razão, que teria feito uma gestão diferente da equipa consoante achasse que era mais ou menos possível ir a uma vaga na Champions através do campeonato, mas o drama do treinador da AS Roma não é nada se comparado com aquilo que viveu Massimiliano Allegri, que ora precisava da carreira na Liga Europa como de pão para a boca, ora se viu tranquilamente em segundo lugar, ora já está outra vez fora da zona Champions – e desta vez já sem a Liga Europa como trampolim. Os tribunais podem ter os seus timings processuais e devem manter a independência face a todos os outros poderes, mas não podem agir como se o resto do mundo fosse totalmente amador na gestão da realidade.
O senhor politicamente correto. Ligou-me esta semana um jornalista belga, interessado em fazer a atualização da biografia de Roberto Martínez, nela incluindo as primeiras impressões que o treinador espanhol terá causado em Portugal. O que lhe disse foi que competitivamente ainda não se podia dizer nada, tão pouco exigentes foram os primeiros dois testes, pelo que o que mais realço destes primeiros meses do novo selecionador é mesmo a vontade de estar de bem com toda a gente. Martínez piscou o olho aos portugueses, comparecendo sempre nos estádios e esforçando-se por falar o nosso idioma. Vai piscando o olho aos adeptos mais ferozes, elogiando jogadores de todos os clubes – esta semana repetiu com João Neves aquilo que já tinha feito com Chermiti, por exemplo. Piscou o olho aos jogadores, fazendo da primeira convocatória quase um decalque da que Fernando Santos levara ao Mundial do Qatar. E até o seu primeiro encontro com jornalistas, feito de forma informal e sem que nada do que ali foi dito pudesse ser transcrito, decorreu sob o signo do politicamente correto – acabámos todos a pensar que mesmo que aquilo fosse uma conferência de imprensa não teria dali saído nada de “escalofriante”. Não há mal nenhum em ser-se politicamente correto. Talvez até seja essa a única forma de lidar com o lixo tóxico que marca a agenda do futebol português. Estará tudo bem desde que, chegada a altura, em Junho, Martínez comece a mostrar um rumo próprio. Ou pelo menos desde que ganhe.
Adorei as conversas de bancada. Obrigado pelas reflexões