Vou andar por aqui
O bis de Bernardo, a ajudar a resolver a meia-final, foi o reflexo prático da assimilação de conceitos por parte de uma equipa que se descreve bem na palavra usada de véspera por Guardiola: “fluidez".
Estou a imaginar Bernardo Silva, antes de qualquer jogo do Manchester City, quando lhe perguntam “então, em que posição vais jogar hoje?”, a responder: “Olha, vou andar por aqui”. Foi mais ou menos isso que ele fez ontem, no amasso que a equipa de Guardiola deu no Real Madrid, a garantir com os primeiros dois golos uma vitória larga por 4-0 e a qualificação para a final da Liga dos Campeões. Bernardo Silva partia da direita no 4x3x3 do City, mas apareceu dentro, primeiro a receber um passe de De Bruyne, depois de um ataque à profundidade feito pelo central-médio que era Stones ter desmontado a linha madridista, e mais tarde a fazer a recarga de um lance começado no flanco oposto, na busca permanente de Grealish pelo um-contra-um com Carvajal, e numa entrada do segundo médio, Gundogan, no espaço do ponta-de-lança. Quando se acusa Guardiola de sobrepensar e ele diz que “não, não se preocupem”, que tudo o que preparou foi um jogo com “mais fluidez”, é inevitável que se pense que esta simplicidade toda dá imenso trabalho, que o “vou andar por aqui” de Bernardo implica horas infindáveis no campo de treinos e, já agora, futebolistas com inteligência para lerem todas as situações e o que elas pedem. Porque não foi só a transformação do 4x3x3 de base no 3x2x4x1 ofensivo a tornar este Manchester City irresistível. Além dessa alteração, já de si disruptiva, porque deita ao cesto dos papéis a ideia de que os defesas-centrais têm de ser os pilares inamovíveis de qualquer ideia ofensiva – no City, Stones vai e os laterais, às vezes, ficam... –, Guardiola monta as dinâmicas em cima de vários jogos de pares, lembrando uma das mais antigas lições de Cesar Menotti, que dizia que todas as grandes equipas se fazem de pequenas sociedades. Se Stones vai, Walker fica. Se Stones fica, Walker vai. Se de Bruyne está dentro, Bernardo alarga. Se de Bruyne abre, é Bernardo quem vem dentro. Se Gundogan baixa, Grealish estica. Se Grealish abre à procura do confronto e do contacto depois do drible ao lateral, Gundogan chega à área. Tudo isto parece extremamente simples, mas não se iludam: é complicado que funcione nos limites da perfeição, como aconteceu ontem, assegurando a tal fluidez que empurrou o Real Madrid para trás. É possível que o jogo tenha sido lançado de acordo com as bases esperadas pelos dois treinadores, mais dominador o City, tanto na posse como na distribuição pelo terreno, mais recolhido o Real Madrid, na busca das transições em que Vinicius Jr e Rodrygo pudessem causar mossa. A questão é que o domínio do City não teve erros que pudessem permitir essas transições e aquilo que o jogo nos mostrou até aos 2-0 foi um Real Madrid demasiado atrás, com as suas duas maiores armas ofensivas tornadas segundos defesas-laterais. Sem números, para não chatear, basta o impacto visual de uma imagem publicada hoje pelo Telegraph para se perceber que até ao primeiro golo de Bernardo, aos 23’, só se jogou em meio-campo. É por isso, por ter aperfeiçoado tanto estas dinâmicas e esta fluidez que o Manchester City é, indiscutivelmente, a melhor equipa da Europa neste momento. Na final de Istambul, contra o Inter, pode ganhar ou perder, que nada muda. Vai continuar a ser a melhor equipa da Europa.
A saga dos guarda-redes belgas. Quando eu era miúdo e lia e relia as edições da Onze que nos chegavam às tabacarias – era a única forma de estar em dia com o futebol internacional – corria em França uma anedota sobre guarda-redes belgas, pintados como sendo tão bons na função de segurar bolas como privados de inteligência. Contava a anedota que, num prédio em chamas, um pai não queria lançar um bebé da janela para a rede dos bombeiros, mas que em contrapartida já o faria se lá estivesse o guarda-redes da seleção belga para lhe segurar o rebento. Assim se fez e o jogador apareceu. Reassegurado, o pai deixou cair a criança, que o guarda-redes captou após um voo plasticamente belo, enrolando o corpo na queda, para a proteger do impacto e evitar largá-la. Feito isto, perante os aplausos de todos os transeuntes, bateu com o bebé duas vezes no chão e pontapeou-o para longe. Courtois é o mais recente representante desta escola de guarda-redes belgas, tendo conseguido o feito de anular a tal loucura natural, que há quem diga faz parte da lógica da posição. Ontem, assinou três defesas absolutamente monumentais, a impedir Haaland de meter o nome na folha de marcadores. E se a primeira e a terceira até podem ser assacadas apenas a um mérito, que é o de manter um posicionamento correto e depois abrir o corpo para ocupar mais espaço, a segunda é um manual do que é ser guarda-redes. Courtois apanhou quatro golos em Manchester, mas evitou pelo menos mais três e dele se pode dizer o que se diz do City. Ganhe ou perca, é o melhor guarda-redes do Mundo.
Fim de ciclo? É certo que com 2-0 o jogo estava feito, que milagres como o do ano passado são únicos precisamente porque não se repetem. Mas não deixa de ser sintomático que os dois primeiros jogadores retirados de campo por Carlo Ancelotti tenham sido Modric e Kroos, até há bem pouco tempo os dois cérebros de um meio-campo ao qual Valverde depois somava dinâmica. Que Kroos e Modric já não estão para grandes correrias, já se sabia há algum tempo. Já era assim no ano passado, aliás, e isso não impediu o Real Madrid de ganhar a Champions. Fê-lo, precisamente, porque os dois, 70 anos em conjunto, já sabiam de cor o mapa do jogo e o seguiam de olhos fechados, chegando primeiro ao destino do que aqueles que eram rápidos e voluntariosos mas se enganavam frequentemente no caminho. O insucesso desta época, porém, cheira a fim de ciclo. Será o convite ao protagonismo de Tchouameni, ao regresso à posição de Camavinga ou à contratação de Bellingham? Talvez. Mas mesmo que tudo isso aconteça, o que parece em antecipação é que mesmo assim ainda faltará o elo perdido entre isso e o jogo que se exige ao Real Madrid. O mercado vai prometer.
A uma equipa tão rica como o Real não faltará profundidade de plantel? Será também um fim de ciclo para Ancelotti? (Embora as suas declarações invoquem a continuação)
Pergunto-me também se o Guardiola caso o City ganhe a final, se o mesmo quererá manter-se nos citizens. Atualmente não vejo equipa párea ao City. Talvez Arteta, Naggelsman, Tuchel, um De Zerbi com um bom projeto. Um Spalleti ou um Hansi-Flick também (também não descarto Ten Haag...)