O mito sebastiânico da Choupana
O Nacional-Benfica foi o 17º jogo adiado na Choupana por causa do nevoeiro em 24 anos. É um problema? É. Mas não pelas razões que vos querem fazer crer. E isto não é uma opinião. É um facto.
Palavras: 1306. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Ao contrário do que já leram e ouviram várias vezes, o adiamento do Nacional-Benfica, ontem, por causa do nevoeiro cerrado que se abateu sobre a Choupana, não foi causado pela falta de profissionalismo da Liga ou pelo excesso de poder do operador televisivo que o marcou para as 18h. O Nacional-Benfica foi adiado por condições meteorológicas adversas – e não, também não é o facto de essas condições já terem levado à interrupção de 17 jogos ali realizados nos últimos 24 anos que as tornam previsíveis, porque no mesmo período se fizeram lá mais de 400 desafios que não foram minimamente afetados. Esta é uma situação mais provável ali do que em qualquer outro estádio da Liga? Sim. Mas se acham que a resposta é proibir o Nacional de fomentar a sua identidade jogando no seu próprio estádio estão a contradizer aquilo que defendem acerca da falta de identidade própria de equipas como a B SAD ou o AFS, que nem elas sabem de onde são e por isso não têm público, ou até do Casa Pia, que faz os jogos em casa em Rio Maior, a 90 quilómetros de Pina Manique – e permitir isso, sim, é que é uma inaceitável falta de exigência da Liga. Se acham que a resposta é proibir os jogos às 18h (ou mais tarde) na Choupana, então já estão apenas mal informados. Porque dos últimos dez desafios ali adiados, de 2010 até Abril deste ano, dois tinham tido pontapé de saída às 11h, um às 15h e quatro às 16h – e não, mesmo começando mais cedo, nenhum deles se concluiu no mesmo dia, pelo que isso também não é assunto.
O que está aqui em causa é muito mais a dificuldade que há para remarcar o jogo do que a incapacidade para prever quando é que vai estar nevoeiro na Choupana – e isso tem que ver com o atafulhamento dos calendários e não com a tal falta de profissionalismo da Liga ou com o excesso de ganância do operador televisivo. Estes são males que talvez até existam, mas que não têm um pingo de responsabilidade no tema. A questão é que apontar para eles é o que convém às narrativas do momento, as narrativas anti-centralização dos direitos audiovisuais. O ideal para que se mantivesse a verdade da competição era que as equipas se defrontassem o mais rapidamente possível, com os jogadores que têm disponíveis agora e no momento de forma atual. Mas isso não é possível, porque entre pausas para as seleções, a Liga, a Taça de Portugal, a Taça da Liga e a Champions, o Benfica só volta a ter um meio de semana livre em Dezembro. E isso é que é um problema, não é o facto de a Liga não ter um funcionário tão zelosamente profissional que consiga soprar o nevoeiro para longe do cume onde foi feito o estádio do Nacional ou de a Sport TV querer ter o Benfica a jogar às 18h, a uma hora a que o seu público já terá voltado a casa dos seus passeios de domingo com a família. Ainda ontem, à noite, circularam fotografias do estádio com visibilidade recuperada, o que deita por terra a ideia de que o problema foi o jogo ter começado tão tarde. Quando muito, o problema foi o jogo ter-se realizado numa época do ano problemática.
Há uma constante nos adiamentos na Choupana. Nestes mesmos últimos dez adiamentos, tínhamos tido um no mês de Outubro, dois em Dezembro, três em Janeiro, dois em Fevereiro, um em Março e um em Abril. Há um período do ano claramente identificado, que basicamente vai de Dezembro a Fevereiro. Sete em dez adiamentos ocorreram nos três meses de Inverno, podendo os problemas estender-se atrás, a Outubro, e à frente, até Abril, porque o clima é isso mesmo, imprevisível. Se querem seguir aquela coisa tão própria da espécie humana que é chutar as culpas para cima, para pessoas ou coisas que não podem controlar, pois bem, responsabilizem a inclinação do eixo da Terra por ter criado as estações do ano. O Nacional-Benfica podia ter sido marcado para mais cedo no dia? Podia, é claro. E não o foi por causa da estratégia do operador, que prefere não ter os nossos grandes a competir diretamente com os grandes jogos de Ligas estrangeiras, de maneira a permitir que os assinantes vejam tudo. Há interesse comercial na coisa, como é evidente, mas mesmo que ele não existisse isso não resolveria o problema. Primeiro, porque nenhum – repito, nenhum! – dos jogos suspensos teve continuação mais tarde no mesmo dia, como chegou ontem a ser sugerido. As equipas preparam-se para jogar a uma hora, alimentam-se, ativam-se, aquecem, para jogar a uma determinada hora, e não aceitam nunca jogar três ou quatro horas depois. Depois, porque mesmo com um pontapé de saída mais cedo durante o dia não haveria mais garantias de que o jogo se fizesse.
Já ali foi adiado um Nacional-FC Porto B (25 de Fevereiro de 2018) marcado para as 11 da manhã. A manhã é má? Afinal de contas, o mito sebastiânico dizia que o rei desaparecido em Alcácer-Quibir iria regressar “numa manhã de nevoeiro”, não era numa tarde ou numa noite de nevoeiro. Portanto, manhãs nunca? Então atentemos na saga que foi a marcação do Nacional-Oliveirense de 2017/18. O jogo estava marcado para as 15h de 31 de Janeiro de 2018. Não se fez, foi adiado para as 15h de 28 de Fevereiro, mas voltou a não se fazer e só pôde jogar-se às 11h de dia 1 de Março. De manhã, portanto. Desde o adiamento do Nacional-Belenenses, inicialmente agendado para as 20h15 de 1 de Março de 2010 e depois jogado às 15h do dia seguinte, só houve mais dois jogos suspensos pelo nevoeiro a partir do final da tarde: o Nacional-Benfica, de 10 de Fevereiro de 2016, que passou das 20h30 para o meio-dia do dia seguinte, e o Nacional-AFS de 5 de Abril deste ano, que se jogaria às 18h e se realizou às 15h30 do dia seguinte. De resto, o CD Tondela e o FC Porto B já ali viram jogos adiados às 11h, o FC Porto, o Benfica, o Vitória FC e a Naval tiveram a mesma sorte em desafios às 16h e, como vimos, o mesmo sucedeu à Oliveirense às 15h. Os factos são esses: não há uma hora em que a Choupana esteja seguramente livre do nevoeiro.
E, como não faz sentido impedir o Nacional de jogar em casa durante os meses problemáticos ou adotar para o clube uma regra que contrarie tudo aquilo que se defende para os outros – todos devem jogar no seu estádio e não sacrificar a identidade a fatores de natureza comercial ou ao negócio da compra e venda das SADs depois deslocalizadas –, a saída também não é a demagogia que manda atacar o ódio de conveniência de cada um, seja ele a Sport TV ou a Liga. Sabem uma coisa? Em Inglaterra, às vezes, neva. Por lá também há jogos adiados e não é por isso que a Premier League deixa de valer muitos milhões no mercado das transmissões. Por mais jeito que isso dê à narrativa, a Liga Portuguesa não passa a valer menos porque há uma média inferior a um jogo por ano adiado à conta do nevoeiro da Choupana. O problema não é esse. O problema é o calendário atafulhado que impede que o jogo possa fazer-se tão rapidamente quanto a defesa da verdade desportiva aconselharia. Mas essa é uma discussão diferente.
Gostava de saber quais os factos que sustentam a teoria das "narrativas do momento, as narrativas anti-centralização dos direitos audiovisuais" como combustível para a discussão em torno dos adiamentos na Choupana.
O calendário atafulhado é um problema? É. Mas isto significa que não exista um problema especifico chamado Choupana? Não. Não vale a pena olhar para o lado, culpar a meteorologia e encolher os ombros, falar de temas laterais como os direitos televisivos, as SAD e a neve em Inglaterra. É diferente forçar um clube a jogar fora porque de repente o Estádio tem de ser de luxo, ou porque a polícia entende que os adeptos do Coruchense vão andar à porrada com os do Benfica, ou porque não podem jogar de noite, ou porque foram vendidos a uma SAD que quer é lucro e não interessa onde jogue (aliás o AVFABCDS ou lá o que é agora, que eu saiba, sabe bem que é das Aves, que o Vilafranquense já era), ou porque no país neva ou naquele dia estava nevoeiro.
Há um problema chamado Choupana, que tem um Estádio num local impróprio para a prática desportiva, que é um caso único em Portugal, nem nos clubes da Beira Interior, das zona circundante da Serra da Estrela existe este problema, há um problema a resolver, há uma região autónoma, com um Estádio sem este problema e algo que o Nacional tem de resolver, não pode ser encolher os ombros e fingir que não há nada. A Choupana e o Nacional não são de todo o mesmo problema do Casa Pia.