O poder de Samu
Samu mudou tanto o futebol do FC Porto que este se tornou difícil de imaginar sem o poder do espanhol. Sem o poder físico para se impor na área e sem o seu poder invisível para mudar processos.
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O golo de Maguire, ao minuto 90 do FC Porto-Manchester United, foi como que uma espécie de reposição da normalidade pré-globalização, daquele futebol em que os estereótipos eram quem mais ordenava dentro de um campo. Até ali, ou pelo menos até aos últimos 20 minutos do jogo, altura em que a falta de experiência competitiva deixou os dragões à mercê de um adversário que estava de joelhos, o que se vira tinha sido uma inversão total do lugar-comum futebolístico. Os ingleses a adiantarem-se com ataques rápidos pelos extremos, os portugueses a virarem à base da presença massiva na área e do poder físico na resposta a cruzamentos. O empate final acaba por ser visto ao mesmo tempo como mal menor e como oportunidade perdida pelas duas equipas, mas não é disso que quero falar-vos. Mais do que o ponto ganho ou do que os dois pontos perdidos, que essas contas far-se-ão lá mais para a frente, do que vale a pena falar acerca do jogo de ontem é da influência que Samu adquiriu no futebol da equipa de Vítor Bruno. Porque não me recordo de ver ali aparecer um atacante tão contranatura como este possante espanhol, que à conta disso já leva mais golos do que jogos. Samu tem sido a chave dos últimos resultados do FC Porto, que agora se encontra numa difícil encruzilhada: usa ou abusa?
Do que se trata aqui não é de definir quem é melhor, se Samu chega sequer para poder calçar as botas de McCarthy ou Falcao, por exemplo, para citar só os pontas-de-lança mais marcantes do FC Porto neste século – Hulk era outra coisa... Ou se, como certamente se potenciará mais a irritação ou o aplauso convicto do público das redes sociais, ele é melhor ou pior do que Gyökeres. Faz umas coisas melhor, como o controlo físico do espaço aéreo, outras pior, como a condução em um para um, mas não é isso que está aqui em causa. Do que se trata aqui é de perceber como é que o FC Porto pode moldar o seu futebol para tirar o máximo partido das caraterísticas de Samu sem se prejudicar. Já se tinha visto que o espanhol era forte no ataque ao espaço, na profundidade, que nem sempre se encontra – basta que o adversário baixe o bloco para lhe roubar grande parte da efetividade dessa arma – e agora percebe-se que também é fortíssimo no jogo aéreo e na finalização. Mesmo acossado, como estava, por De Ligt, ganhou-lhe a frente nos golos que marcou e não perdeu precisão nem espontaneidade no remate face a essa pressão. O desafio que se coloca agora a Vítor Bruno é o de evitar que essa vontade de aproveitamento do mel que é ter o espanhol na frente torne a equipa previsível ou permeável. Porque para já é evidente que, na adaptação ao que lhe pede o ponta-de-lança, o FC Porto está a mudar radicalmente processos – da equipa da Supertaça, que usava o homem do centro do ataque (Namaso) e o médio mais ofensivo sobretudo em apoio, no estabelecimento de uma espécie de retângulo virtuoso com os outros dois médios, delegando a profundidade nos dois extremos e por isso mesmo jogando mais equilibrada no campo, já pouco mais resta do que os equipamentos. E ontem já nem o treinador entrou de calções. Trouxe calças compridas que nem o frio ártico da Noruega lhe exigira, como que para pontuar a mudança de identidade.
Este começa a ser um FC Porto apostado sobretudo na resposta a cruzamentos. Ontem, no lance do segundo golo, o primeiro de Samu, os dragões tinham cinco homens dentro da área do Manchester United, coisa rara para uma equipa nacional, que o futebol à portuguesa é bem mais feito de envolvimentos noutras zonas do campo. Além do espanhol, que marcou à frente de De Ligt, estavam lá Nico González, Eustáquio, Pepê e Galeno. Não foi tanto assim no primeiro golo, o de Pepê, fruto de um cruzamento de João Mário e da abordagem atabalhoada de De Ligt e Mazraoui ao salto de Samu, permitindo a recarga à vontade de Pepê. Nem no terceiro, o segundo de Samu, que saiu da aceleração de Pepê, desta vez autor do cruzamento rasteiro para uma finalização do espanhol, de pé direito, em explosão à frente de De Ligt. De qualquer modo, ao mesmo tempo que é inegável que Samu teve o poder de mudar o futebol do FC Porto, ficam reservas acerca da que pode tornar-se uma equipa monotemática. Nove dos últimos dez golos dos dragões saíram de cruzamentos. Dois (Gül ao Bodo/Glimt e Galeno ao FC Arouca) saíram de bolas paradas, outros dois (Samu ao Bodo/Glimt e Gül ao FC Arouca) de lances aéreos bombeados ao segundo poste e devolvidos para o centro da área, mais dois (Samu ao FC Arouca e Pepê ao Manchester United) da recuperação de cortes sob pressão na sequência de cruzamentos, onde a equipa de Vítor Bruno fez valer a presença na área, e três (Pepê ao Vitória SC e os dois de Samu ontem ao Manchester United) em finalizações diretas. A única exceção a este modo de fazer as coisas foi o golo de Nico González ao FC Arouca, que nasceu da pressão do espanhol sobre David Simão, quando este recebia um passe temerário do guarda-redes Mantl, feito para a zona da meia-lua.
Se de repente lhe apetecer achar que isto é normal, fique a saber que não é. Dos últimos dez golos marcados pelo FC Porto antes da estreia de Samu, só quatro tinham tido origem em cruzamentos – os de Galeno e Nico González ao Sporting, na Supertaça, o de Ivan Jaime ao Gil Vicente e o de Galeno ao Rio Ave. E três desses quatro foram cruzamentos rasteiros, a tirar vantagem de envolvimentos que deixaram o potencial finalizador em condições excelentes – o que não é a mesma coisa do que mandar a bola para a área à espera de que Samu resolva com o seu poder físico. O problema do jogo à base de cruzamentos, que já nem os britânicos usam tanto, a não ser quando estão tão desesperados como estava o Manchester United no último minuto da partida de ontem, é que a taxa de sucesso que apresenta é baixa e só cresce, de facto, com a capacidade para meter muita gente em zonas de finalização. O normal em cada lance desses é ter três homens na área, quatro já são um acréscimo importante mas calculado, e cinco são uma brutalidade que depois se pode pagar cara na transição defensiva. Olhando para as estatísticas que a Opta mantém da Liga Portuguesa, o FC Porto nem é das equipas que mais cruza – é nono da tabela, com 114 cruzamentos (16,3 por jogo), menos 68 do que fez o Benfica, o líder nesse particular. Mas nos três jogos em que tiveram Samu a titular (Farense, Vitória SC e FC Arouca), os dragões fizeram 62 cruzamentos. São 20,7 por jogo, o que prefigura um aumento de 59 por cento face aos 13 por desafio que traziam das primeiras quatro rondas. E nas duas partidas da Liga Europa têm 50 (25 por jogo, que são quase o dobro do início de época).
Samu é um avançado extraordinário e é verdade que ainda não está com a equipa há tempo suficiente para que todos se conheçam tão bem a ponto de as coisas funcionarem, como disse na outra semana Vítor Bruno, por linguagem corporal. Mas esta é a altura em que começa a ser importante temperar o recurso à bomba que ele pode ser na resposta a cruzamentos. É que o reverso da medalha pode ser uma equipa tão oposta à excessivamente circular do início de época que perca a capacidade de criar envolvimentos pelo corredor central. Ou uma equipa que, para fazer golos, precise de meter tanta gente na área – a criação do tal contexto favorável ao destinatário dos cruzamentos – que depois acabe por pagar isso caro sempre que a jogada não acabe com finalização e golo ou bola fora. E não só nada disso parece exclusivamente promissor, como pode ser uma fonte de preocupações.
Um jogador vir para Portugal a "custar" 30M ( Porto pagou 15M por 50% do passe ) também era melhor que nao chegasse e fizesse a diferença...
Eu entendo a questão, mas se funciona com cruzamentos, é normal que se recorra mais aos cruzamentos. Mário Jardel nunca se queixou, nem o Porto com ele. Ou será que Mário Jardel teria de jogar de forma diferente hoje em dia? Acha que teria dificuldades em 2024? Só comparo pela referência aos cruzamentos. Ele que para mim era bem melhor com os pés do que diziam na altura.