O mistério Florentino
O patinho feio do meio-campo do Benfica é sempre o primeiro a saltar para os treinadores de bancada mas lidera uma série de rankings e faz crescer em 13 por cento a média de vitórias da equipa.
Florentino é um dos maiores mistérios do futebol português. Ainda esta semana, quando fiz a edição do FDV Report relativa aos tops estatísticos individuais do primeiro terço da Liga, ele lá aparece a piscar-nos o olho: melhor jogador do campeonato no desarme, mas a uma longa distância do segundo, é ainda o número dois em total de ações e em total de passes por 90 minutos, atrás de João Neves e de Gonçalo Inácio. Lançado na equipa principal do Benfica em Fevereiro de 2019, a render Samaris na ponta final de um 10-0 ao Nacional, assumiu a titularidade nas sete vitórias que a equipa de Bruno Lage somou nas derradeiras sete jornadas dessa Liga, arrancada em recuperação ao FC Porto, e veio como titular para a nova temporada, desempenhando papel importante, por exemplo, logo nos 5-0 ao Sporting na Supertaça. Perdeu protagonismo quando os encarnados acharam que tinham de fazer peito e mostrar os músculos ao mercado internacional, com a contratação de Weigl, em Janeiro de 2020, e o fracasso que ele viveu nos sucessivos empréstimos parecia dar razão a quem se lembrou da operação, mesmo tendo o alemão acabado também por sair em baixa. Florentino fez apenas onze jogos – dois a titular – num ano no AS Mónaco e 24 – dos quais onze entrando de início – noutro, no mais modesto Getafe. Quando voltou ao Benfica, no Verão de 2022, a expectativa já não seria muita, mas ele tornou-se pedra fundamental da equipa que Roger Schmidt levou à conquista do título, que as águias não ganhavam desde que Lage apostara no jovem médio, quatro anos antes. Schmidt puxou dos galões a propósito das apostas que fez em António Silva e João Neves, mas mais flagrante ainda, porque a fez logo a abrir, foi a forma como acreditou que Florentino era o homem de quem a equipa precisava para estabilizar o meio-campo. Ele até pode ter desconfiado, e por isso pediu Aursnes, mas acabou por acomodar o norueguês fora da sua posição natural, demonstrando que estava satisfeito com o contributo do jovem canterano. Ora Florentino pode fazer amanhã, contra o FC Famalicão, na Taça de Portugal, o centésimo jogo pela equipa principal do Benfica. Dos 99 em que alinhou, 63 aconteceram na Liga. Destes, em 48 surgiu como titular. E desses 48 a equipa ganhou 42, somando-lhes três empates e três derrotas. A sua percentagem de vitórias (87,5 por cento) como titular na Liga é bastante melhor do que a da generalidade dos jogos do Benfica na competição nestes cinco anos e meio desde que ele chegou ao plantel principal (74,5 por cento). Mas continua a sê-lo mesmo que retiremos o meio ano que antecedeu a sua estreia em 2018/19 e os dois anos que ele passou fora do país e que foram mal-sucedidos para o clube (aí, a equipa venceu 79,5 por cento dos desafios). E, no entanto, Florentino continua a ser visto com algum desdém e é na cabeça da maioria dos treinadores de bancada o primeiro a saltar sempre que chega um craque, como se viu agora com a contratação de Kokçu, que o levou a perder protagonismo. A questão é, como é sempre, de complementaridade. Florentino era muito complementar com Enzo Fernández, porque a média aritmética das ações dos dois dava um médio quase perfeito. Pode sê-lo com Kokçu, líder da Liga em passes progressivos, que por meter mais risco na posse exige um parceiro mais forte no desarme, na interceção e na transição defensiva a seu lado. Já é mais difícil que o seja com João Neves, que está mais próximo das suas próprias caraterísticas – jogador seguro, fortíssimo nos duelos, rotativo, mas não de muito risco – do que das de médios disruptivos como o argentino ou o turco. Este é o dilema que Schmidt tem de resolver: um meio-campo com Florentino e Neves é curto ofensivamente, porque arrisca menos; um meio-campo com Neves e Kokçu é curto defensivamente, por falta de um jogador mais posicional que assegure as coberturas; um meio-campo sem Neves não entra na cabeça de ninguém. E um meio-campo com os três obriga ao sacrifício de um artista mais à frente. É possível? É. Mas não creio que seja subindo Kokçu no campo, por exemplo para a posição de Rafa – se um jogador se distingue pelo passe progressivo, a pior coisa a fazer é adiantá-lo no campo... E a passagem para o 4x3x3, a solução que vem à cabeça de todos, encerra outro tipo de problemas. É que Schmidt já percebeu nestas últimas semanas o que custa fazer mudanças táticas com o comboio em andamento.
O teu é pior do que o meu. A frase meio apatetada de Sérgio Conceição acerca de João Mário e a meter Roberto Martínez pelo meio, na qual o treinador do FC Porto disse que o futebolista, que se estreou pela seleção nesta janela de Novembro, “voltou meio a dormir”, mas que tinha de se lembrar que ali o treinador era “português e não espanhol” soltou outra vez a tribo dos que andam no futebol não para provar virtudes mas para encontrar defeitos nos outros. Logo à partida Conceição – se bem que nem entendi se aquilo era uma crítica ao deslumbramento do jogador, à falta de exigência do selecionador ou aos espanhóis em geral e à sua tradicional mania de dormirem a sesta a seguir ao almoço. Se a ideia era ser engraçado, não o foi. Se era atingir alguém, também não atingiu, que ninguém percebeu o que ele queria dizer. Seja como for, foi o suficiente para virem logo meia dúzia de lunáticos lembrar que se pode ser xenófobo contra espanhóis mas não contra os iranianos ou os muçulmanos em geral. E uma dúzia de outros recordou que “só” por questionar o clube preferido de um jornalista Schmidt foi alvo de um comunicado do CNID – e o alemão, ao menos, usou clareza suficiente para se perceber aonde queria chegar – mas que agora ninguém chamou a atenção ao treinador do FC Porto. Depois vêm os que se centram na agressão ao “colaborador”, como ele próprio lhe chamou, de André Villas-Boas, provavelmente perpetrada pelas mesmas pessoas que lhe vandalizaram os muros da moradia, chamando-lhe traidor, e isso chegou para do outro lado haver quem lembrasse a morte do Jamor através do lançamento de um “very-light”, os homicídios durante a celebração do último título em volta do Dragão, o incidente em que Vieira apertou o pescoço a um sócio numa AG, a montra partida do talho de Manuel Mota, a cabeçada dada a Pedro Proença... Podia continuar até amanhã. Estas aventesmas não sabem ver um lance de futebol mas sabem de cor todas as cagadas que outras aventesmas ainda piores do que elas fizeram à conta do futebol. E gastam um tempo precioso a enumerá-las em posts de Facebook ou em tweets, às vezes até pagam o visto azul que distingue as contas certificadas, só para poderem alongar-se mais um pouco quando se chega ao epílogo inevitável, que é insultarem-se umas às outras. Todos os dias passo pelo Twitter para medir o pulso à atualidade antes de começar a ler os jornais, mas desde que a equipa de Elon Musk percebeu que, regra geral, faz crescer as taxas de retenção na rede mostrando às pessoas, mais do aqueles que elas escolheram seguir, os tweets aos quais é mais provável que elas reajam de maneira inflamada, esse tem sido um exercício penoso. Mas eu não acordo a querer acabar com o Mundo à cabeçada. E já começo a ficar cansado de silenciar os que se levantam da cama com essa ideia.
Um caso de estudo. É exaustivo e de uma clareza impressionante o artigo escrito hoje no Telegraph por Sam Wallace acerca do caso que opõe em tribunal o internacional holandês Stefan de Vrij ao seu ex-agente Kees Vos – que é também o empresário de Erik Ten Hag, o treinador do Manchester United, e tem feito vários negócios com o clube ultimamente, o que o deixa debaixo de permanente escrutínio por parte da imprensa inglesa, como é evidente. O que está em causa é um processo ganho pelo jogador ao agente que negociou o seu vínculo com o Inter Milão, quando ele estava em fim de contrato com a Lazio, e o recurso interposto por este entretanto. Basicamente, o que a primeira instância deu como provado – mas que Vos quer ver revertido – foi que o agente do jogador trabalhou com o clube contratante para baixar as pretensões salariais do seu representado, recebendo um bónus de 9,5 milhões de euros em contrapartida, valor esse ocultado do futebolista. O desfecho do caso só não me é indiferente porque dele vai depender a urgência que as entidades futebolísticas internacionais terão para atacar esta questão da clarificação de quem representa quem. Ainda ontem, no meu servidor de Discord, um dos subscritores mais ativos por lá, o Alcides Correia, me pedia que clarificasse o que eu queria dizer quando falei da influência de Jorge Mendes numa eventual saída prematura de João Neves do Benfica. E repito aqui aquilo que lhe disse lá. “Um clube que queira que Mendes lhe consiga grandes vendas tem por vezes de se sujeitar aos timings de Mendes”. E acrescento que os timings de Mendes são naturalmente estratégicos, que ele vai gerindo a atividade no fio da navalha entre a necessidade de contentar os seus jogadores, os clubes cujos jogadores vende e aqueles para quem intermedeia compras – e estes muitas vezes são os mesmos. O relacionamento de Mendes com os nossos principais clubes, no sentido em que ele se torna facilitador de enormes transferências, vem dificultar que percebamos realmente quem ele representa nas negociações, se o jogador que quer ir para o estrangeiro, se o clube que precisa de uma mega-venda anual para gerar mais-valias e equilibrar as contas, se a si próprio, na busca da comissão a que tem naturalmente direito. Muitas vezes, o dinheiro é tanto que todos ficam a rir. Mas às vezes há um de Vrij que sente que foi ultrapassado na curva.
Em relação ao episódio do "treinador espanhol", então, é muito mais grave a reação do que a ação (que despoleta a reação)?