O império dos sentidos
No futebol de hoje, tudo se mede. Os sprints, os desarmes, os dribles ou os passes que criam desequilíbrios. Mas desenganem-se os que acham que isto é matemática. Há muito de sentido no jogo.
Palavras: 1274. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram)
O nome de David Pleat não vos dirá muito, sobretudo aos mais novos, que ele deixou de jogar em 1971 e a última vez que pegou numa equipa como técnico, já como bombeiro em serviço de emergência, depois de um par de anos de inatividade, foi no início deste século. O mítico treinador do Luton Town, que até pôde gozar uma passagem pela alta roda, no Tottenham de Hoddle e Ardilles, em meados da década de 80, vai fazer 80 anos em Janeiro e aproveitou o lançamento da sua autobiografia, chamada “Just One More Goal”, para fazer mais do que a defesa do futebol de ataque que diz sempre ter advogado. Pleat acabou o discurso a verberar “os Mourinhos e os Contes” ao mesmo tempo que se queixava de ter sido dispensado pelo departamento de scouting dos Spurs no Verão. “Telefonaram-me e disseram-me: ‘isto agora é tudo orientado para os dados, já não precisamos de olhos nem de ouvidos’”, contou. “É um absurdo!”, enfatizou ainda. O desabafo podia ser visto como apenas mais um lamento de um idoso face às novas tecnologias e à utilização informada que as gerações mais jovens delas fazem se nele não houve uma réstia de sanidade que às vezes nos falta quando pensamos no desporto de alto rendimento. Sempre fui um defensor da utilização de métricas, mas não me passa pela cabeça reduzir a futebol a elas.
Não sou especialista ou sequer conhecedor da matéria, mas creio que nem os programadores dos jogos de computador ou de consola baseiam totalmente o sucesso de um jogador nos valores que lhe são atribuídos nos parâmetros técnicos ou táticos em que os avaliam. O futebol é mais do que a soma de métricas – e se nos jogos, sejam eles de destreza ou de estratégia, haverá uma sobrevalorização da aleatoriedade, para evitar que aquilo seja matemática pura e simples, na vida real há toda uma quantidade de fatores a juntar e que não se resumem a isso mas incluem em porções pelo menos interessantes aquilo a que Cristiano Ronaldo chamou “a cabeça”. Na entrevista que deu ao amigo e ex-colega Rio Ferdinand, o capitão da seleção nacional explicou assim a longevidade de Pepe e a sua própria capacidade para continuar no jogo a um nível de top. “Tem a ver com a mentalidade. Quando chegas a uma certa idade, não é o corpo mas sim a cabeça”, disse o CR7. E “a cabeça” não está sozinha quando se quer explicar o jogo e a razão pela qual ele não equivale ipsis verbis a uma equação em que se somam as percentagens de passes progressivos, de dribles ou de duelos ganhos, o total de desarmes por 90 minutos ou o índice de aproveitamento das finalizações face aos golos esperados de cada uma. À cabeça, há a juntar pelo menos um fator que o recrutamento orientado para os dados não consegue avaliar: o contexto. E o contexto pode ser visto também, pelo menos, de duas perspetivas. A da previsão do que aquele jogador pode juntar ao contexto já criado, mas também a da sua capacidade para se integrar nesse mesmo contexto.
Por ser atual, vale a pena ver pelo menos parte do documentário de hora e meia lançado pelo Sporting ontem, no YouTube, a propósito da conquista da Liga de 2023/24. A par das normais doses de propaganda – é sempre bom enquadrar o trabalho e entender que aquilo não é um produto jornalístico –, “Lado a Lado” mostra bem a importância do contexto criado em torno do grupo pela equipa técnica e pelos capitães. É muito em função desse contexto que a equipa pode valer mais do que a soma dos parâmetros dos jogadores que a integram. É raro vermos um campeão que não seja especialista na exploração desta variável. Seja de um contexto de trabalho e rigor instituído por Sérgio Conceição nas equipas com que foi campeão pelo FC Porto – até na de 2022, das três a mais talentosa –, seja do contexto de liberdade e até alguma irresponsabilidade ofensiva própria da juventude da equipa do Benfica que Bruno Lage levou ao título em 2019. Tudo vale no seu momento, da mesma maneira que deixa de valer depois – e isso viu-se assim que o “modelo-Conceição” foi decretado como esgotado pelos portistas ou quando Lage perdeu a capacidade para ganhar jogos e acabou demitido pelo Benfica. É em grande parte esse contexto que explica que os jogadores variem tanto as suas métricas de ano para ano. Por ser caso extremo, trago-vos um exemplo: como se explica que Pedro Gonçalves tenha passado de um índice G-xG (Golos menos Golos esperados, um avaliador da eficácia na finalização) de 2.0 negativos em 2019/20 no FC Famalicão para os extraordinários 11.7 positivos no Sporting em 2020/21, o ano em que foi melhor marcador da Liga e se tornou peça fundamental na conquista do título pelos leões? Ou que depois tenha voltado a cair para os valores ditos normais, acabando a época transata (a de mais um título) absolutamente em casa, a marcar os exatos onze golos que teve de xG na Liga? Foi o facto de a equipa carburar melhor nuns anos e pior noutros a refletir-se no estado de espírito do jogador? Foi o facto de num dos anos em que ela carburou melhor haver Gyökeres e no outro não, fazendo pesar nas costas de Pote a responsabilidade de marcar os golos? Mas como se media isso? Como se previa que ele ia ser capaz de responder?
E se aqui vos falo do contexto capaz de beneficiar ou prejudicar o rendimento de um jogador dentro de uma equipa não é só para destacar a importância da avaliação atempada quando se faz recrutamento ou, depois, a sua boa integração no coletivo. É para evidenciar que tudo ali conta e que o tudo de que vos falo vai muito para além dos números. O que devem fazer os treinadores neste momento, por exemplo, face a elementos que nem treinaram mas podem ser mais-valias? Há quase 30 anos, Greame Souness não hesitou e lançou num clássico contra o FC Porto três jogadores acabados de chegar ao Benfica e que se quase nem tinham treinado, era natural que não fizessem a mínima ideia do que era suposto ser o jogo da equipa ou do que era o seu contexto. Foi o caso com Poborsky, Kandaurov e Luís Carlos, em 1997/98. Em sentido inverso, neste início de época, na Supertaça, Vítor Bruno não usou os seus internacionais, porque tinham chegado mais tarde à pré-época não estavam familiarizados com o que ele queria da equipa. Deve agora Lage usar Aktürcoglu, que quase nem treinou, porque ele é um valor acrescentado para o Benfica na receção ao Santa Clara e vem de um hat-trick pela sua seleção? Deve Vítor Bruno apostar já em Samu Omorodion para o ataque do FC Porto, mesmo vindo ele de um par de jogos mais desastrados pela sua seleção de sub21, só porque ele traria caraterísticas diferenciadoras ao ataque portista? E, face à lesão de Kovacevic, terá Rúben Amorim mais vontade de estrear Diego Callai ou meter todas as fichas em Franco Israel, que vai chegar a Portugal, da inatividade na seleção, em cima da saída da equipa para Arouca? A estas perguntas, não há métricas capazes de responder, porque o futebol continua a ser um império dos sentidos.
Excelente artigo, parabéns 👏👏
Mais um excelente artigo.
Os números são importantes quando nos permitem avaliar que jogador é melhor. Naturalmente que entre um avançado que marque 20 golos e faça 10 assistências no mesmo papel, e um que fique em branco no mesmo número de jogos, sei qual escolho. O contexto aí entra na avaliação da regularidade exibicional. Lembro que Freddy Montero chegou a uns impressionantes 13 golos em 11 jogos na época de estreia, até que os adversários recomeçaram a levar o Sporting a sério e muitas vezes passava 3 jogos sem marcar e depois marcava um hat-trick, ter um penalti no jogo a seguir e depois passar outros 2 jogos sem marcar. Ou Matías Fernandez que tinha um mês maradoniano por ano ao ponto de elevar o Sporting de um 4.º lugar ao nível do milionário Manchester City e 11 meses completamente fora de forma. Ou ainda João Félix capaz de parecer um craque num jogo e depois passar 20 jogos ao lado do jogo.
Eu apostaria tudo em Diego Callai, mas porque eu pessoalmente não gosto de Franco Israel, não o acho guarda-redes para o Sporting e apostaria em Diego Callai para titular, mesmo com Kovacevic. Mas Amorim nunca foi de apostar em guarda-redes jovens, veja-se o que fez com Maximiliano que até era o titular quando ele chegou e se portava muito bem. Além de que até gosta do Israel, duvido que não jogue mesmo em inatividade. Afinal de contas está sempre em inatividade no Sporting até ser chamado. É diferente dos reforços que de facto desconhecem tudo por nunca trabalharam no clube.