O craque da equipa
As contas do Benfica são preocupantes pois sublinham a dependência do mercado, cada vez mais o craque de uma equipa que se habituou a que seja ele a resolver todos os problemas. E isso não é bom.
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As menos de 24 horas de diferença entre as divulgações do último estudo do Observatório do Futebol, que coloca o Benfica destacadíssimo na frente de todos os clubes do Mundo no que toca a lucros feitos com transferências nos últimos dez anos, e do Relatório e Contas da SAD encarnada relativo à época de 2023/24, onde se registam um passivo recorde e um prejuízo volumoso, vieram sublinhar ao olho do público aquilo que deviam ser sinais de preocupação para a gestão do clube português que mais fatura. Os adeptos encontram assim a explicação para a necessidade de venda dos craques que gostariam de continuar a ver de águia ao peito por mais tempo, mas quem quiser queimar um pouco mais as pestanas e analise os números poderá colocar a pergunta: e isso chega? Veremos daqui por um ano com mais alguma certeza, num relatório que terá a apimentá-lo o facto de ser o último antes das eleições. E, embora a situação não seja nem de perto nem de longe tão grave, muito por força de uma superior capacidade de faturação corrente do Benfica face à concorrência, já se viu que resultados isso deu no FC Porto em Abril, quando as contas foram fundamentais para ditar a queda de Pinto da Costa e a vitória nas eleições de André Villas-Boas.
É verdade que pelo meio se meteram a demissão de Roger Schmidt e o atribulado processo de substituição que desaguou em Bruno Lage, mas mesmo assim a falta da habitual conversa de Rui Costa com um jornalista da BTV a explicar o mercado do clube fez-se notar neste início de Setembro. E essa sensação foi agora reforçada pela nota incluída no Relatório e Contas, em que o presidente benfiquista explica os resultados negativos com o atraso que o Europeu veio provocar no mercado internacional de transferências. Como justificação, é fraca. Há Europeu ou Mundial de dois em dois anos e o panorama será em 2025 agravado ainda com a realização do Mundial de clubes, que também prolongará a atividade competitiva até meados de Julho. O mercado de 2024 foi lento, sim, porque está ainda a adaptar-se a uma nova realidade de austeridade imposta por regras financeiras nas Ligas mais gastadoras, como são as Profit and Sustainability Rules da Premier League. Não o foi por causa do Europeu. E, mais, foi lento este como o serão os próximos, pelo menos enquanto os grandes fundos financeiros que investem no futebol não encontrarem a melhor fórmula para contornar este controlo – está a fazer por isso o Chelsea, com a realização de contratos de longa duração com jovens comprados a peso de ouro, ainda que já se tenha visto que a solução dificilmente será essa, porque a falta de acerto nessas apostas de risco leva a que elas tenham de ser repetidas a uma cadência que multiplica os gastos de forma insana.
De qualquer modo, para deitar por terra a justificação do Europeu, bastaria recordar aquilo que disse o mesmo Rui Costa aquando da transferência de João Neves, que podia ter salvo este exercício se tivesse sido fechada mais cedo – mas que nesse caso já não contribuiria para salvar o próximo, o tal cujos resultados serão apresentados um mês antes das eleições e que servirá de tema para uma eventual campanha eleitoral. “As pessoas têm de entender que adiámos por muito tempo esta transferência, que rejeitámos as primeiras propostas de uma forma clara”, disse Rui Costa no dia em que tratou de preparar os benfiquistas para a saída do médio que rumou ao Paris Saint-Germain por 59,9 milhões de euros. Afinal, foi de propósito. E o facto de da data dessa mudança dependerem as apresentações destes resultados e dos que aí vêm reforça a ideia de que o mercado tem sido o salvador, não é só do Benfica, é do futebol português como um todo, como se vê no último relatório mensal do Observatório do Futebol, organismo do Centro Internacional dos Estudos de Desporto, da Universidade de Neuchâtel, na Suíça. Lá se descobre que a Liga Portuguesa foi a que mais lucrou em todo o Mundo com transferências nos últimos dez anos, um total de 2.340 milhões de euros entre valores recebidos e gastos em vendas e compras de jogadores. Mas também que o Benfica é o campeão global do mercado, com 816 milhões de euros positivos, 343 milhões acima do segundo, que é o Ajax, e mais 175 milhões do que Sporting (quinto da tabela) e FC Porto (sétimo) somados. Olha-se para aquilo e adivinha-se um clube a deixar cair notas pelos bolsos, de tanta fartura. Só que não é essa a realidade.
A relação do Benfica com o mercado começa a ser marcada por um efeito de dependência semelhante ao que uma equipa tem de um jogador fulcral. Não só no sentido de não se saber como se fazem os golos se ele lá não estiver, mas também no sentido do acomodamento geral, na esperança de que ele surja do nada para resolver os problemas que o coletivo não é capaz de apagar. Tirar o mercado a este Benfica é mais do que seria roubar Eusébio à equipa dos anos 60. E, sendo verdade que a sua dimensão lhe permite ter uma capacidade ímpar para faturar noutras áreas (foram 179 milhões de euros em receitas operacionais, num ano banal de Liga dos Campeões), não o é menos que o merchandising ou a bilhética, mesmo a bater recordes, não valem no plano geral aquilo que valiam Coluna, Simões ou José Augusto para Bela Guttmann, Otto Glória ou Fernando Riera. E por isso mesmo, num ano sem o Eusébio dos dias de hoje, o Benfica viu o passivo aumentar (já são 483 milhões de euros) e os capitais próprios diminuir (para 81 milhões que, mesmo assim, são o melhor número entre os três grandes, é bom que se diga).
No exercício de 2023/24 o Benfica só incluiu uma grande venda, que foi a saída de Gonçalo Ramos para o Paris Saint-Germain, por 65 milhões de euros. Somada a transferências menos impactantes, como as de Musa ou de Lucas Veríssimo, essa alienação valeu a entrada de 77,3 milhões de euros no capítulo dos rendimentos com transações dos direitos de atletas. E se é simplista analisar as contas da SAD apenas em função daquele que é o mais influente dos parâmetros amplamente variáveis, o próximo exercício vai bem lançado. As transferências de João Neves, Neres, Morato e Marcos Leonardo, fechadas depois do encerramento das contas, trarão ao Benfica mais de 130 milhões de euros, para já apenas contrabalançados com um investimento de 38 milhões em Pavlidis, Aktürcoglu e Beste. Sem se saber como se resolve a situação de Schmidt e se o valor que ele tem a receber será total ou parcialmente incluído no próximo relatório, ou quando entrará efetivamente a receita do Mundial de clubes – se até ao fecho das contas de 2024/25 ou só nas de 2025/26 –, é certo que o novo exercício mandará o Benfica mais uma vez para o lote dos clubes mundiais mais rentáveis em termos de mercado de transferências, com cerca de 100 milhões de ganhos.
Mas se isso já o leva a pensar num resultado recorde em 2024/25, é melhor pensar duas vezes, que o atual relatório menciona uma perda de 89,8 milhões de euros se extirpado de compras e vendas de jogadores. E fala de uma temporada em que os custos com pessoal, por exemplo, baixaram cerca de quatro milhões de euros, mas sobretudo em função de não ter havido lugar a pagamento de grandes retribuições variáveis: o Benfica não foi campeão e só aí “poupou” o prémio, reduzindo em mais de oito milhões de euros o total a pagar. O que é preocupante é que o Benfica não só continua a ter de vender como, enquadrada esta conclusão na realidade do mercado em austeridade em que vivemos, já não lhe basta fazer uma grande venda. Precisa de duas. Não lhe basta que o craque do qual depende – que é o mercado – faça um golo. Necessita de um bis ou até mesmo de um hat-trick à Eusébio. E se isso explica muita coisa, da dependência de agentes inflacionistas, que depois cobram as suas comissões, à saída prematura de jogadores, quando ainda teriam muito para dar, também recomenda um curso de ação como imprescindível: esta é a altura de o Benfica voltar a olhar para dentro. Não como em 2015, quando a aposta no Seixal serviu sobretudo para alimentar o mercado dos bebés, injetado com esteróides Gestifute, mas para voltar a ser dono do seu futuro, começando por reduzir a despesa com salários naturalmente mais baixos e aumentando o período de permanência dos melhores valores. O problema é que não só isso parece incompatível com a política de acolhimento de emprestados que tem sido recorrente nos últimos tempos como é evidente que para isso é preciso ganhar. Dentro do campo e, depois, fora dele, nas eleições.
Volto a dizer. Em Portugal os clubes não querem discutir formas de o futebol ser rentável sem ter de recorrer ou à venda apressada do maior talento do clube, que leva ao absurdo de ter agentes a oferecer jogadores em nome do clube, aos quais acabam a pagar com Vinagres, ou à salvação por um milionário que apareça e compre a SAD.
Os adeptos também não querem discutir, porque aceitaram este status quo, porque se envolvem em campeonatos das transferências como se o objetivo não fosse ganhar títulos e criam dogmas, como o dos quadros competitivos, envolvidos em discussões sobre justiça e democracia ou do que é um campeonato, como se o desporto não fosse na sua natureza antidemocrático, a justiça não fosse apenas e só as regras serem iguais para todos e campeonato não fosse apenas um nome, porque não depende do modelo por pontos ou por eliminatórias.
Enquanto assim for, enquanto não discutir como pode o campeonato ser rentável, como chamar adeptos aos clubes da terra, como usar o marketing da melhor forma, como internacionalizar o campeonato, vamos continuar com relatórios e contas cheios de ilusionismo, vendas apressadas, comissões chorudas e clubes destruídos por SAD.