O homem que não sabia o seu lugar
De Chalana todos guardamos a imagem de um futebolista genial, mas excessivamente modesto e incapaz de superar as adversidades que foi tendo de enfrentar. Mas e se ele só não queria chatear-se?
Guardo na memória alguns momentos de Chalana e um dos mais marcantes, por ser dos últimos antes de ele ter desaparecido do espaço público, afastado pela doença, coloca-o a dançar num auditório, contagiado pela alegria emanada pelos miúdos da equipa de sub17 do Benfica quando, no âmbito de uma reportagem que a Sport TV fez sobre a sua vida, lhes foi mostrado um vídeo com jogadas em que ele despedaçava defesas adversárias. Todos sabiam que Chalana tinha sido futebolista, muitos saberiam até que era dos bons, mas se calhar nunca tinham percebido que o “mister” tinha sido mesmo o maior jogador português da sua geração. Comigo guardarei para sempre uma dúvida fundamental para explicar Chalana. E ele? Será que ele sabia?
Costuma dizer-se que um tipo humilde é alguém que “sabe bem qual é o seu lugar”. E sempre achei que o problema de Chalana foi que nunca soube qual era verdadeiramente o seu lugar, o lugar que ocupava na hierarquia de valores do futebol. As palavras dos que com ele jogaram até vêm, por vezes, em sentido contrário, descrevendo um Chalana confiante e desafiador face aos adversários diretos, mas quem estava de fora olhava-lhe para a timidez tinha espaço para achar que ele frequentemente pensava que não estava à altura. Último exemplo disso foi quando, depois de já ter sido adjunto e até treinador interino na equipa do Benfica, pediu à direção para ser despromovido de técnico principal a auxiliar de Renato Paiva nos sub17. Era o Chalana excessivamente humilde a vir à tona. O Chalana que se retraía nos conflitos de balneário que o afetaram à chegada a Bordéus, onde ninguém teve a paciência de tentar entendê-lo. Ou que se escondia até nas declarações à comunicação social atrás de Anabela, uma das primeiras WAGs portuguesas, a mulher-furacão com quem partilhou a vida enquanto esteve no topo da escada da fama.
E no entanto, em campo, Chalana era tudo menos modesto. Em campo, a mente raramente o atraiçoava, funcionando como ponto de partida de um corpo anatomicamente desenhado para jogar futebol. Havia ali tanto de Maradona, na forma como tanto um como o outro foram capazes de superar a aparente desvantagem física para se tornarem enormes. Como Diego, Chalana tinha mente de futebolista. Nem a forma como era capaz de fazer da bola a extensão do corpo e entortava adversários só com um ligeiro movimento de anca – também vista no astro argentino – o inibia de utilizar dentro de campo a clarividência que possuía, uma capacidade para escolher sempre a boa solução, fosse ela o drible, a mudança de velocidade, o passe curto, o passe longo, o toque com o pé esquerdo ou o direito, o cruzamento ou o remate à baliza. Chalana tinha tudo e por isso funcionou como referência para as maiores estrelas que se lhe seguiram no panorama do futebol nacional, de Futre a Figo, dois craques que apesar de crescerem do outro lado da Segunda Circular, de verde e branco, tantas coisas foram beber ao seu futebol e o idolatravam acima de qualquer outro. Faltar-lhe-ia, talvez, um físico mais robusto, uma maior capacidade de lidar com as adversidades, a vontade de elevar a voz acima da dos que dele abusavam, mas até isso acabou por fazer parte da lenda do jogador que foi precoce em tudo: a começar a e acabar.
O talento do jovem Chalana foi transversal a Mário Wilson e José Maria Pedroto, treinadores que se opunham em tudo o resto no extremamente bipolarizado Portugal da segunda metade dos anos 70. Wilson estreou-o na equipa do Benfica que foi campeã de 1975/76, quando o miúdo do Barreiro acabara de completar 17 anos, Pedroto chamou-o à seleção nacional no início da temporada seguinte, quando, ainda antes de ele atingir a maioridade, Mortimore – o novo treinador dos encarnados – fez dele elemento decisivo na conquista do bicampeonato de 1976/77. Podia ter sido o suficiente para o miúdo se encher de si próprio, mas isso nunca aconteceu. Chalana submeteu-se sempre aos outros em situações limite, como o assédio do Sporting, em 1980, ou do Boavista, em 1984. A situação de 1980 é emblemática: o contrato que assinara quando subiu aos seniores do Benfica estava a acabar, com ele afastado dos relvados há seis meses, por causa de uma fratura do perónio com rotura total de ligamentos, sofrida na Póvoa de Varzim, em Novembro de 1979. Do Benfica, zero novidades. A recuperar no Centro de Reabilitação de Alcoitão, o jogador reconheceu a existência de uma proposta muito mais vantajosa do Sporting. “Provavelmente esta será a última época em que estou ao serviço do Benfica”, disse.
Isto não foi timidez nem humildade. Foi franqueza. No fim, submeteu-se e renovou contrato. Como se submeteu ao emigrar para Bordéus, permitindo ao Benfica avançar para as obras de fecho do Terceiro Anel do antigo Estádio da Luz com os 232 mil contos que pagou Claude Bez por uma das estrelas do Europeu de 1984. Ou quando, diminuído pelas lesões constantes e por três anos de inferno em França, dois deles quase sem jogar, lhe disseram, em 1990, aos 31 anos, que já não servia para ajudar a sua equipa de sempre. A reação de Chalana foi também a de sempre. Achou que não tinham razão, encolheu os ombros e partiu, para jogar no Belenenses e no Estrela da Amadora, na II Divisão. E a dúvida ficará para sempre. Fê-lo por excesso de humildade ou só porque não estava para se chatear? Gosto de acreditar que esta última versão é a correta.
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