O grito do gladiador
“Não estão entretidos?!”, gritava Maximus ao público extasiado do circo. O grito podia ser imitado por Acerbi, que levou para lá do limite a mais notável semifinal da Champions de que me lembro.

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O grito veio-lhe lá muito do fundo, das entranhas de um ser marcado pelo sofrimento, que o privilégio de ser futebolista de (muito) alta competição não anula a possibilidade de se sofrer. Antes de tirar as duas camisolas que trazia, a do Inter e a interior, para festejar o improvável golo que acabara de marcar exibindo o torso tatuado, cada desenho a simbolizar uma cicatriz, quase sem um centímetro quadrado em branco, Acerbi vencera dois cancros, o alcoolismo e uma depressão. Aos 37 anos, marcava o seu primeiro golo nas provas da UEFA – aliás, ainda estou para perceber como é que ele, defesa-central que nem costuma fazer golos, apareceu ali. Acerbi resgatou o Inter do inferno que seria acabar a época sem grandes perspetivas de um troféu, que a Taça e a Supertaça já fugiram em dois dérbis com o Milan e a Série A parece encaminhar-se mais para Nápoles a cada semana que passa. E sei que é um cliché, um lugar-comum a que se recorre amiúde quando uma equipa italiana obtém uma vitória tão épica como os 4-3 do Inter sobre o FC Barcelona, ontem, mas o grito de Acerbi após o resgate fez-me lembrar o grito do gladiador, o “força e honra” de Russell Crowe no filme de Ridley Scott. Porque tal como o que faziam as legiões do norte comandadas por Maximus Decimus Meridius, também aquilo que fez a equipa Nerazzurra ontem ecoará na eternidade.
É claro que falar é sempre muito mais fácil quando se ganha – e há um parágrafo inteiro no final deste Último Passe dedicado ao patético discurso do FC Barcelona contra a arbitragem de ontem –, mas acredito no que afirmou Giuseppe Marotta, CEO do Inter, no final da partida, quando ia a passar na zona mista. “Daqui a um par de anos, esta equipa do FC Barcelona será, e por uma grande distância, a melhor equipa do Mundo”, afirmou o dirigente que recuperou o clube na sequência da crise que se seguiu à partida do último dos Moratti e à queda do emblema nas teias do capital estrangeiro. Enfim, não subscrevo a parte em que ele diz “por larga distância”, que nestas coisas da supremacia as distâncias tendem sempre a esbater-se quando surgem, mas parece evidente que, podendo o Barça manter os jovens craques que tem vindo a mostrar ao Mundo – e pode – não vai passar muito mais tempo sem jogar a final da Champions em que muitos o colocavam já neste mês. Não é só Yamal, como não são só Pedri ou Cubarsi. No onze de ontem, Hansi Flick teve seis sub25 e dois jogadores que ainda nem sequer têm idade para tirar a carta de condução. Do banco, vieram mais quatro rapazes que nem 25 anos têm – e isso notou-se. O que queremos é ver espetáculo? Sim, claro. Já dizia Russell Crowe, ainda no Gladiador: “Não estão entretidos?!” Mas, a ganhar por 3-2, a chegar ao final do período de compensação, quando teve bola, perto do bico da área italiana, Yamal tinha duas opções: ia à procura do quarto golo e da glória ou da bandeirola de canto e do final da eliminatória? O instinto mandou-o buscar o golo. É o que está certo em 99 por cento das situações, por muito que depois lhe tenha corrido mal. O destino fez a bola bater no poste, no ataque que se seguiu apareceram o golo e o grito de Acerbi, a levar tudo para o prolongamento em que Frattesi carimbou o apuramento do Inter.
Foi pena? Foi. Dá gosto ver esta miudagem do Barça jogar e meter chama e criatividade em cada ação, ao passo que o Inter é sobretudo uma equipa sólida, matreira e experiente: no onze de ontem, Simone Inzaghi tinha quatro trintões e do banco fez saltar ainda outros tantos durante os 120 minutos. Mas, se pode ter sido uma pena até para os neutrais, não foi injusto. Nos 210 minutos que levou a eliminatória, o Inter esteve em vantagem por 89, enquanto que o Barça só saboreou a sensação de ter a final de Munique à mão de semear nas míseras seis voltas que o ponteiro mais veloz deu ontem ao relógio entre o golo de Raphinha, a fazer o 3-2, aos 87’, e o empate de Acerbi, aos 90+3’. A eliminatória pendeu para o lado italiano, por um lado, à conta daquilo que foi identificado por Marotta, o facto de esta equipa do Barça ainda não ser um produto acabado. Mas não foi só por isso. Foi também porque o Inter soube ser estrategicamente adaptável ao adversário – a primeira parte de ontem é notável, nessa parte do jogo – e porque depois teve num par de individualidades de rendimento superior a chave para entrar em Munique como finalista. Uma das frases mais inspiradas que já li hoje foi a que escreveu Elias Israel na Marca: “Sommer defendeu tudo, até a Bola de Ouro de Yamal”. E, sim, entre as sete defesas que o austríaco fez ontem – e já tinham sido outras sete na primeira mão – há três impossíveis, duas das quais em lances de golo que podiam ter catapultado ainda mais para cima a candidatura do adolescente espanhol ao título de jogador do ano. Mas não foi só ele a brilhar. Thuram fez uma meia-final inesgotável, acima até do contributo dado por Lautaro Martínez, capitão e estrela da equipa. Ambos parecem no limite das forças, o que se por um lado traz boas notícias ao SSC Nápoles, que em Abril aproveitou o desfoque do Inter para se isolar no campeonato, por outro chama a atenção para a profundidade de um plantel que, não tendo candidatos à Bola de Ouro, tem soluções alternativas para todas as posições. Sim, o Inter sofreu quando teve de trocar Di Marco por Carlos Augusto – foi aí que Yamal mais se soltou –, mas ainda assim tem Planos B mais credíveis do que os chamados ao relvado pelo Barça quando lhe faltam os titulares.
O que eu não esperava, sinceramente, era ver o discurso comum a todos os Culés, que no final justificaram o insucesso com a arbitragem. “Todas as decisões de 50-50 foram tomadas a favor do Inter”, queixou-se o mesmo Hansi Flick que, por exemplo, na vitória sobre o Benfica (5-4), na Luz, na fase de Liga, achava que tinha de se respeitar a arbitragem. Estamos a falar de um clube que ainda há semana e meia esteve do lado certo da inaceitável pressão feita pelo Real Madrid às equipas de arbitragem, que é o lado de quem recusa cavalgar essa onda ignóbil. É duro perder, mesmo quando o futuro joga a favor das nossas cores. Mas há limites que não se podem passar. E aqui há quem os passe por desconhecimento – há quem não saiba que, ao contrário do que sucede com os agarrões, as rasteiras marcam-se onde começam e não onde acabam –, mas depois também há quem os passe por doença e, pior, quem os passe por puro e simples aproveitamento. No futebol há lugar para quem, tolhido pela cegueira clubista, ache que o toque de raspão de Dumfries em Gerard Martin, antes do cruzamento para o golo de Acerbi, é falta, mas que o empurrão de Fermín López em Leandro Barreiro, antes do golo de Raphinha, na Luz, foi um contacto normal. Começa a deixar de haver para quem depois não se cala com esta lenga-lenga. E não devia haver, de todo, para quem aproveita para ir à procura do exato frame que pretende mostrar uma coisa que, em movimento, não aconteceu como se quer fazer crer, para passar a ideia de que isto está tudo comprado.