A Geração Z e o futuro do futebol
Antes de se indignar com o que quer que seja na cobertura do futebol, pare um minuto para refletir e pense o que é que nela verdadeiramente o estimulou sem lhe provocar indignação. Fica difícil?

Palavras: 1320. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Ainda não vos choquei hoje? Estou a falhar. Como é que é possível um gajo querer fazer vida de jornalista e comentador de futebol, chegar a esta hora do dia e ainda não ter expelido uma só tirada daquelas que a malta depois usa no café ou na fila para o micro-ondas da copa lá do escritório, onde se aquecem os ‘tupperwares’ com a marmita preparada de véspera? Onde é que é suposto vocês irem buscar o vosso shot diário de dopamina? Ainda por cima em semana de dérbi decisivo, não há aqui um “vocês sabem do que é que eu estou a falar”, uma insinuação de favorecimento para um lado ou para o outro, venha ela dos árbitros ou dos últimos adversários, uma sugestão de malas a circular ou uma crítica feroz à incompetência absoluta de treinadores ou de jogadores, um ataque à normalidade, seja ela qual for? Mas, afinal de contas, o que é que eu ando aqui a fazer? A tentar entender as coisas? “Oh pá, se eu quisesse entender as coisas ia fazer terapia”.
Aqui há uns anos, seguramente mais de uma década, um amigo meu dos tempos de faculdade que tinha funções de liderança num dos nossos maiores grupos de media, mas que de bola pescava pouco ou nada, chamou-me a atenção para a mais nova promessa do setor que tinha debaixo do seu manto protetor. “Tem imenso jeito para o Twitter”, disse-me. Vim a conhecer a pessoa numa competição internacional, passei a respeitá-la, ainda que não necessariamente pela capacidade que aparentemente teria para polemizar naqueles 140 caracteres que cabiam num tweet. A conversa veio-me há memória na semana passada, quando li a notícia do The Telegraph que dava conta da intensa remodelação que está a ser preparada pela Sky Sports, com redundâncias e despedimentos na redação feitas para agradar à “Geração Z” (há link aqui, para quem quiser fazer o obséquio). E ficou mais fresca quando percebi, no L’Équipe (link aqui), que já havia acordo de rescisão do contrato que ligava a Liga Francesa e a DAZN e que, partindo daqui, estava aberto o caminho para a criação de um canal oficial da Liga, a única maneira de os clubes recuperarem os valores de outrora, eliminando a necessidade de um intermediário.
Pode parecer que não, mas isto está tudo ligado. A Sky Sports quer levar para a televisão todo o esplendor do algoritmo do YouTube, da mesma maneira que aquele meu amigo em funções de comando queria levar para os seus meios a polemização do Twitter. E eu, que não tenho nada contra uma forma mais descontraída de comentar futebol – a RTP nem me exige gravata e, embora não se veja, vou sempre para o estúdio de sapatilhas... –, começo a achar que esse é o primeiro passo para uma necessidade de opção entre duas coisas más que nos são postas à frente pela modernidade. Queremos polémica estéril ou ligeireza vazia? É hoje evidente que a World Wide Web e a consequente popularização dos meios de difusão nos levou muito para lá da Galáxia de McLuhan que aprendíamos na universidade há 40 anos. E que, se o jornalismo sobre futebol era um híbrido entre o rigor da informação e a busca da emoção, hoje em dia tornou-se uma bem menos aconselhável hidra de várias cabeças. Uma mostra-nos, à mesma, o rigor que se exige à informação, mas as outras são formadas pelas vontades de, por um lado, a controlar, para se agradar aos detentores dos direitos e de, por outro, a tornar polémica, de forma a chegar a quem consome. A “Geração Z” já não é só multicanal e multitarefa – isso é a minha geração – mas é, acima de tudo, acionável por outro tipo de estímulos. Não vê os jogos e, ao contrário do que dizia Florentino Pérez, já nem tem grande paciência para resumos, mas é capaz de estar na Twitch a ver alguém ver um jogo, sobretudo se pelo meio houver uns quantos impropérios politicamente incorretos.
Não sou, nem pouco mais ou menos, saudosista – e muito menos o seria de um período em que a informação era privilégio de uns poucos, que depois decidiam como queriam partilhá-la. Isto não é, portanto, uma revolta contra os tempos modernos. Mas é um convite à reflexão em torno da forma como os vivemos. Vamos ter o jogo do título no sábado e do que se fala não é de nuances táticas, técnicas ou estratégicas das duas equipas que vão discutir a prova. É da eventualidade de o Gil Vicente ter dificultado demasiado – o que quer que isso signifique – a tarefa ao Sporting, por comparação com o que fez quando defrontou o Benfica. É do arraso que uma série de comentadores deram no treinador leonino por ter insinuado isso mesmo de forma infeliz, chamando-lhe “parolo” ou “tasqueiro”. É da manipulação de imagens ou da sua exploração abusiva para inflamar as respetivas hostes, como sucedeu com uma foto de Harder com um cachecol onde se lia “Sporting campeão” – quando o Sporting é, de facto, campeão. É das habituais queixas de benefícios arbitrais para este ou aquele lado – que só quem está do outro vê... – e até da sugestão de nos tornar numa Grécia ou numa Turquia do Ocidente, chamando árbitros estrangeiros para o desafio, como se nesses campeonatos não houvesse treinadores portugueses em número suficiente para nos recordar que nada mudou com essas medidas extraordinárias. Pelo contrário, Mourinho até faz passar a imagem de que vai perder a Liga turca à conta de um VAR português.
Seja por coragem de dar o peito às balas e convicção pura na radicalização daquilo que se diz ou por simples esperteza saloia e vontade de agradar a quem vive de shot de dopamina em shot de dopamina, polemizamos em vez de tentarmos perceber as coisas. Seja por que razão for, o sucesso na tarefa de comunicar está aí. E é isso, a somar a razões económicas simples de entender – a eliminação do intermediário – que vai levar as Ligas e todos os detentores de direitos a controlar a totalidade do pacote. Se a DAZN não consegue fazer render os 375 milhões de euros que concordara pagar por oito dos nove jogos de cada jornada da Liga Francesa – seja porque a malta não vê os jogos, porque não paga para os ver, optando antes pela pirataria, ou porque o Paris Saint-Germain ganha sempre – é normal que queira sair fora. Se ninguém se aproxima sequer dos valores de outros tempos, é igualmente normal que a Liga pense em ter tudo debaixo da sua alçada, produzindo e vendendo. É melhor, então, porque reduzimos essa necessidade permanente de polemizar? Não, porque ao mesmo tempo perdemos o escrutínio, a vontade de tentar entender as coisas, e do que se trata a partir daí é de vendê-las como o paraíso na Terra. O falhanço do ecossistema que eu prefiro – e que o leitor, se chegou até aqui em vez de desistir ao fim do primeiro parágrafo, também preferirá – passa pela nossa incapacidade para refletir acerca das suas cambiantes.
Tudo bem, rejeitamos o jornalismo e o comentário sobre futebol porque ele nos indigna, porque dali só vem polemização ou, em alternativa, porque é demasiado aborrecido, sem nos estimular o engajamento. Mas vejamos a coisa ao contrário. E pensemos: nestes últimos dias, o que é que na cobertura do futebol nos estimulou sem nos provocar indignação? O futuro está aí e não vale a pena rejeitá-lo. Há, isso sim, que aprender a viver com ele, mantendo os necessários níveis de dignidade. E é isso que está cada vez mais difícil.