O Geny Santos e o Matheus Esgaio
Há muito que o Sporting começa a defender com linha de quatro, subindo um dos alas para o patamar dos atacantes. Ontem, no Bessa, isso foi evidente, com Catamo. Mas a mudança acaba aqui.
Há o Geny Santos e o Matheus Esgaio. Ou, se quisermos abusar das referências literárias, o Nuno Catamo e o Ricardo Reis. Já o tinha escrito aqui, no início da época: Rúben Amorim encara os seus alas “em duas classes, os ofensivos, que até a defender começam o processo bem na frente, forçando a abertura de um central na lateral, que são Santos e Catamo, e os defensivos, que fazem linha de quatro atrás com os centrais, que são Esgaio e Matheus Reis”. Ontem, o Luís Freitas Lobo destacou, e bem, na transmissão do Boavista-Sporting, que Geny Catamo ficava na frente em início de processo defensivo, levando a que Diomande encostasse na lateral atrás dele. Tanto insistiu na ideia que ela se tornou tema de debate – é esse o poder da televisão – e Rúben Amorim teve depois de a explicar na conferência de imprensa. “O Geny foi fazer o que o Nuno Santos faz. Já se olha para ele como um lateral, mas se tirarem a fotografia muitas vezes, faz o mesmo que o Nuno Santos. A estratégia é essa, é inverter o lado”, disse o treinador leonino, que faz dessa imprevisibilidade acerca do lado para onde inclina a transformação do 3x4x3 em 4x2x4 uma forma de “surpreender os adversários”. E o maior problema da clareza é que acaba com o mistério. Num ápice, os gurus das redes sociais, os que andam há anos a criticar o treinador do Sporting por jogar sempre da mesma maneira – “onde é que já se viu um candidato jogar com linha de cinco atrás?” – olharam para a coisa e viram nela a maneira de se verem livres dos seus ódios de estimação, nada mais nada menos do que os alas defensivos, Matheus Reis e Ricardo Esgaio, curiosamente autores das assistências para os dois golos de ontem. Decretaram imediatamente que a maneira correta era somar Geny Catamo e Nuno Santos, os dois alas que ficam na frente em início de organização defensiva, ignorando nesse instante que assim estavam a anular as vantagens da ideia. Quais são? Amorim já explicou uma, que é a possibilidade de deixar o adversário na dúvida acerca do lado a reforçar até ver o onze inicial. Eu acrescento outra, que é a capacidade para manter quatro homens na primeira linha de pressão, sabendo que atrás estão quatro defesas. O Sporting não fez um jogo particularmente conseguido no Bessa e ganhou porque deu sinais de maturidade, aceitando a partir de determinado momento que podia gerir a partida a partir do contra-ataque. Tinha de ser assim? Não creio. A diferença de potencial podia justificar uma diferença mais acentuada entre as equipas, mas vi nos leões vários problemas. Atrás, com Geny adiantado, a linha ficou mais de uma vez vulnerável ás diagonais de Bozenik, que passava à frente de Coates para ir buscar a bola nas costas de um dos centrais do lado. À frente, a pressão não saía bem – e, sendo melhor com bola, no um para um, nisso Geny ainda não faz o mesmo que Nuno Santos. E com bola não contrariava bem a linha de pressão média do Boavista, muito centrada no bloqueio a Morita e Hjulmand – daí saindo a incapacidade de ligar com Gyokeres. Seja porque Bozenik colocou mal o pé esquerdo e se deixou ficar em fora de jogo no lance do golo anulado ou porque, como destacou Pedro Gonçalves, a linha defensiva do Sporting estava muito certa, os leões acabaram por ganhar e garantiram que chegarão ao dérbi, na pior das hipóteses, em igualdade pontual com Benfica e FC Porto – e provavelmente até chegarão lá isolados na frente. E de uma coisa tenho a convicção: isso é fruto do crescimento tático de uma equipa que muda muito mais do que pensam os críticos.
Petit e a injustiça. Petit era muito melhor jogador do que deixam entender a escorregadela e a queda na área técnica quando, ontem, tentou dominar a bola para a devolver mais depressa para dentro do relvado, mas ficou marcado pelas palavras que, reza a lenda, António Oliveira terá dito a Figo quando o convocou pela primeira vez para a seleção nacional, em 2001, acabara ele de ser campeão nacional no gregário Boavista de Jaime Pacheco. “Vais ver. É um pitbull”, disse o selecionador, para lhe enfatizar a capacidade de marcação, numa altura em que as imagens da nossa Liga nem chegavam a Espanha. Logo aí, porém, o médio não fez a coisa por menos e deu uma assistência para o próprio Figo marcar o golo com que Portugal empatou em Dublin com uma República da Irlanda que personificava, ela sim, o futebol feito de garra. Mais de 20 anos depois, Petit dirige uma equipa do Boavista que está longe daquela em que ele se revelou nos índices agonísticos e na criatividade, mas o povo ainda precisa de perguntas como a que ontem lhe foi feita, depois da derrota com o Sporting, para o entender: “É tempo de acabar de vez com a conversa do futebol defensivo, do Petit defensivo, do Boavista defensivo?”, perguntou-lhe o jornalista da Sport TV. O treinador diz que sim, lembrou que o seu Boavista já foi o quinto melhor ataque da última Liga – e nem devia precisar de fazê-lo, face ao futebol que a sua equipa mete em campo. Este é um Boavista que tem dois laterais ofensivos – e ontem faltou Bruno –, que tem um médio equilibrador sem mas também com bola, como Seba Perez, e outro de passada larga e chegada à frente, como Makouta, que tem extremos velozes e criativos, de que é exemplo maior Tiago Morais, e que tem um ponta-de-lança que só vê baliza, como Bozenik. Há ali miúdos a crescer e uma certeza: por maiores que sejam as dificuldades enfrentadas pelo Boavista nos gabinetes, esta equipa tem futuro e vai safar-se bem no campo.
A oitava de Messi. Messi ganhou ontem a oitava Bola de Ouro. É a última, mas na verdade já a sétima o tinha consagrado como vencedor particular na luta com Cristiano Ronaldo, que se ficou pelas cinco, para se designar o melhor dos extraterrestres que marcaram este início de século. No entanto, por mais Bolas de Ouro que tenha lá em casa, aquilo que elevou Messi ao patamar de Pelé e – acrescento eu – Maradona foi o título mundial, em Dezembro de 2022, no Qatar. O Mundial não devia garantir a Bola de Ouro, dizem os contestatários, que lembram o Mbappé de 2018, o Neuer de 2014 ou o Iniesta de 2010, todos batidos nas votações. Aliás, o triunfo de Messi na eleição da France Football tem muito em comum com o estranho caso de Cannavaro, Bola de Ouro de 2006. Se o italiano, consagrado numa altura em que o melhor do Mundo era Zidane, o foi para matar dois coelhos de uma cajadada, primeiro para punir a agressão de Zizou a Materazzi na final do Mundial e depois para dizer a toda a gente que os defesas também podiam ser Bolas de Ouro, a vitória do atacante argentino volta a ser a junção de razões conjunturais a uma declaração de princípios. Além de partir da constatação de que nenhum elemento da melhor equipa do Mundo, o City, estava em condições de ganhar este prémio – Haaland porque “só” marca golos, De Bruyne porque cedeu na final da Champions e Rodri porque é apenas uma peça da máquina –, a oitava Bola de Ouro de Messi serviu mais para lhe marcar o encontro com os eternos e para o designar como melhor da sua geração do que para dizer que ele é o melhor dos dias de hoje. Em 2023, o palco volta a abrir-se aos comuns mortais.