O futebol de custo zero
O UD Leiria-Vitória FC, da Liga 3, foi o segundo jogo com mais gente no estádio em Portugal neste fim-de-semana. Razões: os bilhetes eram grátis e houve romaria com artistas populares. Isto é bom?
O enorme sucesso que foi a realização do UD Leiria-Vitória FC, dois clubes de I Divisão que estão neste momento a jogar a Liga 3 e que conseguiram a segunda maior assistência do fim-de-semana futebolístico nacional, pode abrir-nos os olhos a todos para um dos problemas do futebol. E não, não é o do preço dos bilhetes, que é uma questão que tem de ser atacada com urgência mas não pode nunca ser resolvida com a generalização da borla. Falo do apelo de consumo. O futebol, hoje, está vários degraus abaixo do Toy, do Quim Barreiros e do porco no espeto no estabelecimento de prioridades dos portugueses para os seus momentos de lazer. E isso acontece antes de mais nada porque, como espetáculo, o jogo tem deixado muito a desejar, mas sobretudo porque o desenraizamento e o aumento da oferta levou as pessoas a anular a sensação de pertença que as levava a engrossar as fileiras dos seus clubes a cada fim-de-semana.
Há quem rejubile com o facto de, suprimindo o valor da entrada, terem estado mais de doze mil pessoas a ver o UD Leiria-Vitória FC. “Afinal, o futebol continua a ser atrativo”, dirão. E é verdade que na maior parte das vezes – sobretudo para adeptos visitantes – o futebol é um custo insuportável. São bilhetes a mais de 30 euros, que devem ser multiplicados por dois ou três, aos quais acresce o valor das viagens – gasóleo, portagens – e ainda a necessidade de se comer qualquer coisa. Um domingo de futebol na estrada fica sempre acima dos 100 euros para uma família de três, o que é demais para a generalidade dos agregados portugueses. E isto é presumindo que o jogo é ao domingo à tarde e que não foi movido para uma segunda-feira à noite para se acomodar na grelha do operador televisivo. Vai daí, perante o problema, há respostas certas e erradas. A certa é baixar os preços dos bilhetes e aumentar o respeito pelo consumidor, concentrando os jogos nas alturas em que ele está disponível e lutando pela melhoria e pela transparência do espetáculo. A errada é pura e simplesmente dá-los de borla, mesmo que com o apoio de patrocinadores. Porque o futebol custa dinheiro e não pode gerar a ideia de que é oferecido. Esse é, na maior parte das vezes, um caminho sem regresso ou de regresso muito tortuoso.
Aconteceu o mesmo no jornalismo. Tal como os jogos de futebol de hoje em Portugal, os jornais enfrentaram no início do século XXI o problema gerado pelo dualismo entre o excesso de oferta e o apelo e a necessidade de consumo. Primeiro, os jornais desportivos passaram a diários – excesso de oferta, com eventual decréscimo da qualidade do produto ou pelo menos com a sua banalização. Depois, as notícias passaram a estar acessíveis de forma gratuita na Internet – e agora, pior ainda, em horas intermináveis de programas televisivos servidos aos serões. Se já não tinha apelo, o consumidor deixou de ter também necessidade de consumo. E para esta ideia de que não é preciso pagar pelo jornalismo até a própria indústria dos media deu um contributo, com a criação dos jornais gratuitos, iludida pela ideia de que a publicidade tudo pagaria. Não pagou. O setor atravessa há duas décadas uma crise gravíssima por uma razão muito simples: soterrou os eventuais consumidores com oferta e tanto gerou neles a ideia de que não precisavam de pagar que acabou por ter de se conformar a essa realidade e hoje vende-se a troco da necessidade de receita.
O futebol já vive o momento do excesso de oferta próprio da nossa sociedade global: um jogo de futebol na televisão já não é a exceção que entusiasmava a minha geração mas a realidade de todos os momentos. E o desenraizamento começou aí. Como convencer o adepto de Leiria ou de Setúbal a ir ao estádio se ao mesmo tempo pode ver o FC Porto, o Sporting ou o Benfica? E o pior é que isto funciona de forma gradual e já estamos a perguntar a nós mesmos como convencer o adepto de Lisboa ou do Porto a ir ao estádio se ao mesmo tempo pode ver o Manchester City, o Real Madrid ou o Bayern. A resposta de Leiria passou pelo Quim Barreiros, pelo Toy e pelo porco no espeto, por uma romaria popular em que o pretexto, o jogo de futebol, era coisa de somenos. O UD Leiria-Vitória FC foi um sucesso popular, com 12.581 pessoas nas bancadas, e até aceito a ideia de que algumas lá tenham deixado dinheiro nos comes e bebes e outras possam ter gostado desse epílogo que foi o chuto na bola e se mostrem no futuro predispostas a voltar, se entenderem que o preço dos bilhetes é mais ou menos acessível. Mas não duvido que grande parte dos que lá foram, foram ali como teriam ido ao Domingão da SIC ou ao Somos Portugal da TVI, que hoje por hoje são, nas pequenas comunidades, o maior rival do jogo de futebol do clube da terra e os maiores adversários desse enraizamento futebolístico que, além da falta da necessidade e do apelo de consumo, acaba com o sentimento de pertença que está a matar o futebol dos clubes pequenos.
Sejamos claros: não há mal nenhum em preferir a romaria ao jogo de futebol, nem que seja porque a primeira é gratuita e o segundo faz-se pagar e toda a gente tem de equilibrar as contas lá em casa. Nem há mal nenhum em atrair as pessoas com a festa popular. O mal, aqui, é o futebol gerar nas pessoas a ideia de que vale zero. Porque zero foi o que pagaram para ver duas equipas a disputar um jogo. Isso parecer-me-á sempre um erro estratégico.
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