O físico e a cabeça
O PSV Eindhoven-Sporting levou-me de volta a uma das minhas frases preferidas de Cruijff. Os leões estavam a ser fisicamente atropelados até ao momento em que usaram a cabeça. Daí lhes veio o ponto.
Palavras: 1285. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu canal de Telegram).
A ver o PSV Eindhoven-Sporting de ontem, várias vezes me veio à memória uma das famosas frases de Johann Cruijff – e nem de propósito, que o jogo era nos Países Baixos. “O futebol é um jogo que se joga com o cérebro”, dizia o neerlandês mais influente do século XX. E tantas eram as vezes em que os jogadores leoninos escorregavam e caíam que aquilo que eu pensava era: “Epá, está bem, mas para isso tens de conseguir manter-te de pé”. Aliás, para ser justo, as dificuldades do Sporting no relvado do Phillips Stadion não se resumiam a uma má escolha de pitões. E não, também não se resumiam a meia dúzia de más escolhas de pitões, tantos foram os futebolistas afetados pelas escorregadelas, a lembrar a cena das meias novas e das botas que escapavam aos jogadores do Benfica, na final de 1988. As dificuldades do Sporting pareciam ter que ver com uma dimensão física diferente do PSV, cujos jogadores eram, regra geral, mais fortes no corpo-a-corpo, mais rápidos sobre a bola, mais imponentes nos duelos, capazes de empurrar o jogo para perto da baliza de Israel. Até que entrou Bragança. E aí sim, voltei à frase de Cruijff, uma das minhas favoritas do antigo craque e treinador. “O futebol é um jogo que se joga com o cérebro”. É, sim senhores.
A influência da entrada de Bragança na equipa do Sporting, ontem, aos 52 minutos, não teve que ver com a dimensão física do seu futebol – embora também seja um engano olhar para ele e dizer que ele é fisicamente inferior a outros jogadores, que não é. E não, não é coisa de hoje, conforme se perceberá por uma simples análise das métricas que ele vem apresentando ao longo dos anos (e já se percebia isso aqui, em final de Janeiro de 2022), onde o aspeto defensivo nunca foi menorizado. Também não teve que ver com a escolha acertada de pitões. Não sei se ele ia de borracha, plástico ou alumínio, mas vi que, na origem do lance do golo do empate, quando fugiu a Tilman e se preparava para encarar Ledezma, também ele escorregou, a ponto de ter sido já sentado no relvado que deu a bola a Gyökeres. Mas levantou-se e correu para onde tinha de correr de maneira a receber o cruzamento de Maxi Araújo e meter a bola nas redes. O que Bragança trouxe ao futebol do Sporting foi a capacidade para pensar. A ideia completa de Cruijff era: “Todos os treinadores falam de movimento, de correr muito. Eu digo: ‘não corram tanto’. O futebol é um jogo que se joga com o cérebro. Tens de estar no sítio certo no momento certo, nem demasiado cedo nem muito tarde”. E foi isso que Bragança deu, por exemplo, à saída de bola do Sporting: estava muitas vezes no sítio certo, no momento certo, nem muito cedo nem demasiado tarde.
Diz-nos o GoalPoint que o PSV Eindhoven conseguiu 25 ações defensivas dentro do meio-campo do Sporting, mas que só nove dessas 25 recuperações sucederam na segunda parte. E, mais, que só cinco aconteceram na última meia-hora. Qual foi a diferença? Maior cansaço dos jogadores da casa, por isso menos eficazes na pressão? Mais tendência para segurarem a vantagem protegendo o seu próprio meio-campo em vez de jogarem alto no terreno, para não arriscarem deixar tanto espaço atrás? Provavelmente, sim e sim. Mas houve também uma maior capacidade de quem estava à frente do início de construção do Sporting para dar as linhas de passe de que esta precisava. E isso veio da entrada de Bragança, mais capaz de receber a bola em zonas onde não tivesse a sombra opressiva de Shouten, porque procurou outros terrenos e deu a Rúben Amorim a certeza de que pode e deve introduzir nas dinâmicas da equipa as nuances que cada jogo lhe pede. O que resulta do desafio de ontem não é que Bragança é um jogador genial e Catamo imprestável como atacante. Não é sequer que contra adversários mais fortes o Sporting precisa de um terceiro médio, que foi aquilo que Bragança soube ser, partindo da meia-direita para o centro. O que resulta do jogo de ontem é, antes de mais, que ele pedia mais as caraterísticas de Bragança do que as de Catamo e que, como aos jogadores convém terem contacto prévio com o relvado para escolherem bem os pitões, os treinadores podem ter uma ideia muito segura do que querem, mas até a verem em prática não saberão nunca se ela passa da teoria.
Amorim justificou no final a titularidade de Catamo no lugar do lesionado Pedro Gonçalves com a vontade de ter ali um jogador rápido, que empurrasse Schouten para trás, deixando Saibari sozinho a meio-campo. No papel, isso faria sentido. Na prática não o fez, porque o moçambicano, a receber de costas para a baliza adversária – coisa que não lhe acontece se jogar na linha lateral, como ala num 3x4x3 ou extremo num 4x3x3 –, não chegou a conseguir virar-se com a bola, quanto mais a correr com ela para a área. Da mesma forma, quando Diomande se lesionou, face às dificuldades que até ele, o mais físico dos centrais do Sporting, estava a ter para controlar a ligação direta dos neerlandeses em De Jong, o ponta-de-lança, pensou-se que o Sporting ia sofrer ainda mais, mas aquilo que se viu foi a equipa a beneficiar, primeiro, do critério em saída de bola de Inácio, que passou a central do meio, e depois do pé direito de Debast a partir da esquerda, onde deixou de ter a tentação de procurar tanto as diagonais de Gyökeres para a profundidade – mais ainda quando à frente dele passou a ter a capacidade de Bragança para receber dentro. O que o jogo de ontem disse foi que a dimensão estratégica é cada vez mais importante no futebol de alto rendimento. E que se o Sporting já varia atrás, alternando a construção a três ou a quatro, com a introdução entre os centrais de Morita, e fazendo última linha defensiva a cinco ou a quatro, como fez ontem quando Quenda avançava para apanhar Dams, também pode variar na frente, com jogadores de caraterísticas tão diferentes como o são Pedro Gonçalves, Harder, Edwards ou Maxi Araújo para ter formas de chegar com qualidade ao último terço, independentemente do desafio que é apresentado pelo adversário.
Gyökeres é o jogador mais decisivo do futebol português no momento presente, mas nem ele resolve se não lhe for criado o contexto ideal. E não, não é porque de repente Flamingo tem a dimensão física que falta aos centrais do nosso futebol e por isso se torna capaz de o igualar ou porque assim que sai do nível da Liga Portuguesa ele se ressente – foi sobretudo porque nada do que estava em torno dele funcionou e a equipa se limitava a despejar bolas para ele correr, sem lhe criar o tal contexto do qual ele pudesse tirar vantagem. O Sporting trouxe dos Países Baixos um ponto feliz, que pode vir a ser importante nas contas finais, mas trouxe mais do que isso. Trouxe a certeza de que há mais do que uma maneira de fazer as coisas. E que de todas as possíveis, não há uma que esteja certa, tornando todas as outras erradas. Como é que isso se percebe, jogo a jogo? Voltamos a Cruijff. Usa-se o cérebro.
Um péssimo resultado para o Sporting. Benfica e Sporting têm grandes equipas, com grandes jogadores, bem capazes de chegar aos 1/8 diretamente, pois para cada um só há dois adversários muito mais fortes, os outros estão perfeitamente ao alcance...o que não pode acontecer é mais uma "marselhada". Isto lembrou o suicídio do Sporting quando há duas épocas deixou fugir o apuramento direto devido à exibição mais desastrosa que já vi no futebol (no caso de Adan) e depois a inconsciência de Esgaio no segundo jogo em que foi expulso. Agora foi Debast quem mais uma vez errou de forma comprometedora. Foram dois pontos perdidos.
Bragança é bem melhor do que lhe dão crédito, o que acontece muito nos jogadores que jogam em Portugal, mas eu pergunto porque Amorim, após a lesão de Pedro Gonçalves, roda tanto daquele lado do ataque, provando que não pensou bem no que significa plantel curto, pelo menos dois por posição. E mais do que isso, se Harder funcionou tão bem, porquê trocar por Maxi Araujo? E depois porquê tirar Maxi Araujo, fazendo uma terceira alteração no ataque?