O FC Porto numa encruzilhada
Podemos olhar para as cenas da AG de ontem do FC Porto como um dia negro para o clube ou como uma prova da existência de oposição pronta a levar a votos ideias de mudança de rumo.
Não estou nada convencido de que, como disse André Villas-Boas, a noite de ontem tenha sido “uma das mais negras” da história do FC Porto. As cenas de violência que marcaram a tentativa de levar a cabo em Assembleia Geral um debate acerca das condições em que vai decorrer o próximo ato eleitoral no clube são, naturalmente, condenáveis. São um reflexo da barbárie em que se cai sempre que se acolhem governações absolutas, com o favorecimento de uma casta privilegiada e o crescimento de uma guarda pretoriana destinada a eternizá-la igualmente contra recebimento de vantagens. Mas o facto de haver tanta gente disposta e até desejosa de participar na discussão deixa uma réstia de esperança a quem entende que o caminho tem de ser o de permitir que surjam alternativas. O FC Porto não reside dentro de Pinto da Costa nem se extinguirá quando o atual presidente deixar de o liderar. Pinto da Costa – e Pedroto – são os dois maiores responsáveis pelo que é o FC Porto de hoje, moldaram-no na sua lógica de combate ao centralismo, tenha ela sido sentida ou apenas estratégica, mas o antigo treinador já nem sobreviveu para ver o clube ser campeão da Europa e do Mundo e o presidente ainda ontem repetiu que não está apegado ao poder. Estando Pinto da Costa prestes a fazer 86 anos e tendo já completado 41 de presidência – aos quais soma mais uns quantos como diretor do futebol, antes de de lá ter sido afastado na sequência do Verão Quente de 1980 – devo dizer que acredito nele. Mas não tenho a certeza de que nisso seja secundado pelo séquito que o rodeia e que naturalmente o influencia mais a cada ano que passa e a energia vital nele se vai gradual e naturalmente extinguindo. Os clubes de futebol funcionam em contra-ciclo com aquilo que é a realidade mais habitual em quaisquer outras áreas da sociedade. Se na política se vê a alternância como a via mais natural para uma governação saudável, no desporto associam-se ciclos vencedores a longos períodos de estabilidade e a votações acima dos 80 por cento – algo que na política se veria como sinal de decrepitude de um regime. E basta ver o que sucedia nas autarquias antes da limitação de mandatos ser uma realidade imposta para se perceber que estes longos períodos de poder geram vícios, criaturas que a dada altura escapam ao controlo dos criadores e fazem tudo para prolongar no tempo os seus privilégios. As eleições de 2020, com oito mil votantes em era de Covid e um em cada quatro votos a preferirem o relativamente desconhecido José Fernando Rio já deram o sinal de que há um novo FC Porto a meter a cabeça de fora. A enorme afluência à Assembleia Geral de ontem confirma essa ideia. O ato eleitoral da Primavera de 2024 será, por isso, fundamental para o clube, que só ganhará se nele conseguir duas coisas: debater de forma saudável aquilo que tem sido bem e mal feito e fazê-lo sem destruir o legado de Pinto da Costa. Para ambas é preciso uma confluência de vontades das duas fações. Tem de aparecer uma oposição clara e sem medo de dizer o que pensa para não alienar apoios de uma comunidade que ainda julga unida em torno de um pensamento único – ou pelo menos de um líder que não é questionável – e tem de haver da parte da situação sinais igualmente claros de que essa oposição terá campo para se expressar de forma livre. Hoje ainda não tenho a certeza de uma coisa nem da outra. Na próxima segunda-feira, quando se retomar a Assembleia Geral, vamos ter algumas pistas.
Schmidt e os jornalistas. Quem me lê com regularidade sabe que há zero corporativismo nas minhas opiniões. Não tenho nenhuma procuração para defender os jornalistas, seja passada por um sindicato em que não estou inscrito, por uma comissão de carteira profissional cujo título nem renovei no último ano ou por um Clube Nacional de Imprensa Desportiva que é presidido por um dos meus melhores amigos e um dos melhores profissionais com quem tive o gosto de trabalhar, o Manuel Queiroz, mas de que não sou sócio. Não a tenho, logo à partida, porque não me revejo em muito daquilo que é feito na tentativa de adaptar o jornalismo aos tempos modernos e às redes sociais, seja na busca da polemização estéril ou do soundbyte viralizável, e depois porque, estando fora dos grandes meios, tenho mais o que fazer para viabilizar a minha própria operação e desligo-me por falta de tempo desse tipo de iniciativas de classe. Mas esse facto não me inibe de considerar errada a forma como Roger Schmidt se dirigiu ao Gonçalo Ventura na sequência da pergunta que este lhe fez na conferência de imprensa que se seguiu ao Benfica-Sporting. “Não sei porque me faz essa pergunta, se é do Sporting ou do FC Porto...”, comentou o treinador do Benfica, que depois se virou para o lado e perguntou: “É do Sporting ou do FC Porto?”. Já sei que alguns de vós, benfiquistas, acharam o máximo, que o importante é pôr essa corja no seu lugar – da mesma forma que achariam inaceitável se tivesse sido Sérgio Conceição ou Rúben Amorim a fazer aquela figurinha. E atenção que o mesmo aconteceria se fosse com adeptos de outra tonalidade ou treinadores de outro clube. Mas o clube de infância do jornalista, ali, é tão relevante como o clube de infância de Roger Schmidt, que eu não sei se é o Borussia Dortmund, o FC Colónia, o Leverkusen ou o Fortuna Dusseldorf. O Gonçalo, tal como Schmidt, estava ali como profissional, a representar a entidade patronal e, não tendo faltado ao respeito a ninguém, tem o direito a ser respeitado e a não ver o seu profissionalismo posto em causa por ter feito uma pergunta que era legítima, ainda que não suportada em factos que talvez a tornassem fastidiosa. Se, além de ter perguntado a Schmidt se achava que o resultado tinha sido “melhor do que a exibição”, o Gonçalo tivesse confrontado o treinador do Benfica com o facto de a equipa ter abusado dos cruzamentos (foram 30, o seu máximo nesta Liga) ou de ter chegado aos 90+3’ com um índice de golos esperados (xG) inferior ao do Sporting, que passara meio jogo com um homem a menos (0,73 para 0,74), a resposta do técnico seria diferente? É possível que sim, é possível que não. Aqui, não faço contra-factual. Limito-me a olhar para os factos e a recorrer ao passado para os interpretar. E ainda ontem, no meu servidor de Discord, o Guilherme Pereira, um subscritor benfiquista que vive na Alemanha, nos recordou a última vez que Schmidt protagonizou um confronto com um jornalista em Leverkusen, a 10 de Fevereiro de 2017, numa altura em que também estava debaixo de pressão – perdera dois jogos seguidos e era nono na Bundesliga, já a dez pontos dos lugares de Champions. “Quer provocar-me ou só precisa de encher a folha de papel? Já respondi cinco vezes a isso”, disse Schmidt ao repórter que insistia em perguntar-lhe, de várias maneiras, qual era a importância para ele do jogo que se seguia para evitar o despedimento. O Leverkusen ganhou esse jogo ao Eintracht Frankfurt, Schmidt manteve-se no clube, acabando despedido menos de um mês depois, a seguir a uma goleada (2-6) contra o Borussia Dortmund.
De Schmidt a Martins. A saída de Schmidt, nessa altura, não se deveu à pressão dos jornalistas adeptos de outros clubes, mas sim à decisão da administração do clube dele. Como o facto de haver agora quem conteste as suas decisões não implica, primeiro, que se seja a favor do seu despedimento e, depois, que se pertença a outro clube. Repetidamente aqui escrevi contra a transformação de Schmidt no Eriksson reencarnado, quando ele ganhou o campeonato, e depois contra a sua metamorfose em estropício inútil, quando perdeu os quatro primeiros jogos da Liga dos Campeões deste ano. Tal como achei improvável o Benfica acertar o 3x4x3 sem o ter trabalhado em profundidade e sem ter formado o plantel para tal – e na altura li comentários de benfiquistas nas redes sociais a questionar a minha crítica, mas a verdade é que o próprio Schmidt já recuou. O que há a retirar até do comunicado emitido pelo Benfica a criticar a atitude generalizada da comunicação social – como se isso fosse possível... – contra o treinador, é que o apoio que os clubes e os seus apaniguados dão ou retiram tem sempre que ver com o momento. Que o diga Filipe Martins, treinador que abandonou o Casa Pia ao fim de três anos e meio de crescimento mais ou menos contínuo por causa de cinco jornadas sem ganhar – nas quais se mete um empate com o Benfica na Luz, porém. Ao contrário do que motiva cada suspiro de Schmidt, a saída de Martins deu-se sem manchetes e sem espaço nos painéis televisivos. E não é porque os jornalistas sejam adeptos do Estrela da Amadora ou do Atlético. É porque os leitores e os espectadores são do Benfica, do Sporting ou do FC Porto.