O fardo da decisão
O que separa os grandes dos outros, tanto dento como fora de campo, é a capacidade para decidir. Kane decide quase sempre bem nas quatro linhas, mas nunca teve de se atravessar nos gabinetes. E agora?
Harry Kane parece-me ter tanto de bom jogador como de procrastinador. A diferença entre o avançado altruísta, que é quase um dez a partir da posição nove e por isso entrega muitas vezes as decisões a quem joga nas suas imediações, e o profissional sem coragem para assumir escolhas de vida é que, no campo, ele é tão bom naquilo que faz que não deixa de marcar os seus golos. Fora de campo, nas decisões de carreira, contudo, esteve sempre confortável com a ideia de que a responsabilidade era sempre de outro qualquer. Estava preso num Tottenham onde não ia ganhar troféus porque o irmão, Charlie, tinha negociado em 2018 uma renovação por seis anos que o deixava de pés e mãos atados. Não saía para o Manchester City, para o Manchester United, para o Real Madrid, para o Paris Saint-Germain ou para o Bayern Munique porque Daniel Levy, o patrão do clube londrino, é conhecido como o mais feroz negociador do futebol mundial e exigia sempre quantias incomportáveis para o libertar. Até que, a um ano de poder perdê-lo a custo zero – sendo que Kane já fez 30 anos no mês passado... – Levy lhe passou para os ombros o fardo da decisão. Aceitou a proposta do Bayern, que só se sabe que anda à volta dos 100 milhões de euros, com adicionais que podem fazê-la subir para os 100 milhões de libras, que são uns 115 milhões em euros. E Kane, que Uli Höness até já tinha dito, em quebra de confidencialidade que afinal de contas pode não ter sido tão inocente assim, que lhe garantira que sairia se os clubes chegassem a acordo, vai ter de escolher. Já circula a versão segundo a qual o jogador hesita porque terá uma oferta melhor para a próxima época, quando acaba contrato e é dono do seu próprio destino. Acrescenta-se que, em privado, ele já teria estipulado o início do campeonato – que é hoje... – como data final além da qual não se mexeria, porque isso não seria justo para os adeptos e para o treinador, e que como não há maneira de completar a transferência num dia, até porque ele ainda terá valores a receber do Tottenham, não sairia. Fala-se muito do recorde de Shearer, cujos 260 golos na Premier League seriam um objetivo para Kane, que tem 213 – mas para isso um ano não chega. Seja como for, neste momento, não vai dar para passar e entregar a finalização a ninguém. Nem ao clube que quererá contratá-lo daqui por um ano, nem ao Tottenham, que ironicamente o poderia manter porque lhe está a dever dinheiro, nem muito menos a Shearer. Esta, Kane vai ter de a assumir em nome próprio. E da escolha que ele fizer vai depender em grande parte o que as gerações futuras recordarão deste capitão da seleção inglesa daqui por umas décadas. Um goleador que só realizou o seu potencial na conquista de títulos perto do final da carreira ou um enorme talento desperdiçado num clube sem condições para ganhar o que quer que seja. Tem a palavra Kane.
Pum, pum, estás morto. Quem parece não ter medo de tomar decisões é Ivan Jaime, o médio-ala promissor que chegou a Famalicão há três anos e ali tem alternado momentos de enorme qualidade com ocasos dificilmente justificáveis. Falou-se na saída para um dos grandes neste defeso, mas ela não aconteceu – e a verdade é que Jaime não vai estar na equipa com que o FC Famalicão abrirá a Liga, mais logo, em Braga, porque se manifestou “indisponível”. Quem o revelou foi João Pedro Sousa, o treinador famalicense. Se estivessem a brincar aos cowboys, a frase do líder da equipa equivaleria ao “Pum, pum, estás morto” que retira o outro do jogo. Jaime, uma espécie de Mbappé ao contrário – o francês quer jogar pelo PSG e não o deixam, o espanhol não quer jogar pelo FC Famalicão, apesar de ter contrato por mais dois anos – vai passar a ser visto com outros olhos por quem quer que pense na sua contratação. E agora? Ou Jaime recua e João Pedro Sousa o recupera ou corre sérios riscos de desperdiçar talento a ver jogar os colegas. E não pode ter sucesso a forçar uma transferência? Pode, claro. Mas acho difícil que alguém queira pagar alto por um jogador que olha para os contratos com tamanha ligeireza. É que “quem com ferros mata...”
Salários ou transferências. O Benfica já apresentou Trubin e Arthur Cabral, Alan Varela já fez a despedida do Boca Juniors para incorporar o plantel do FC Porto, a culminar um processo que demorou mais por causa do acordo entre clubes, mas o Sporting continua à espera de Hjulmand, apesar de já ter fechado negócio com o Lecce há alguns dias. Sei que para o viral das redes sociais o que interessa aqui é que uns estão falidos, outros gastam demais e ficarão falidos em breve, outros ainda andam a chular os contribuintes e por fim, outros são nabos e não sabem negociar enquanto uns são magos do mercado. Não é isso que me interessa. A mim, a dúvida que me sobra é mais central. Como é que os nossos clubes descobriram o potencial financeiro para aquisições acima dos dez e por vezes até dos 20 milhões de euros, como é que conseguem ir buscar gente importante, já não digo à Argentina, mas até à Serie A italiana, e depois se vê que as hesitações de Hjulmand têm que ver com o facto de a Lazio, que nem pagaria tanto por ele ao Lecce, lhe oferecer o dobro do salário que ele vai auferir em Portugal? Quais serão as razões por trás desta desvirtuação das regras de mercado, que leva os clubes portugueses a pagar mais pelas transferências e menos em salários? Será porque são excessivamente dependentes das mais-valias geradas e, por isso, dos agentes que lhas podem garantir, desviando em contrapartida uma percentagem maior do valor gasto para as compensações por transferência, sacrificando o valor a pagar aos artistas? Não será esse um fator extra a contribuir para a fuga de talentos de que estamos sempre a queixar-nos? Ainda não tenho resposta para estas perguntas todas, mas acho que vale a pena pensar no tema.
Uma dupla promissora. Não vi o FC Arouca-Brann de ontem, que ontem, de acordo com as regras que defini para o Futebol de Verdade Flash (envio de vídeos acerca dos jogos dos quatro primeiros na própria noite), era a minha noite de folga do futebol. Mas já vi o resumo e fiquei positivamente impressionado com a combinação de Mujica e Cristo no ataque amarelo. Os dois avançados espanhóis contribuíram com um golo e uma assistência cada um para a vitória por 2-1 e se o segundo golo demonstra já algum conhecimento das movimentações um do outro, o primeiro é prova das vantagens de ter os dois homens de área em campo ao mesmo tempo. A questão que fica é esta: quantas vezes irá Daniel Ramos apostar nos dois?
E de quem é essa proposta pelo Kane para o próximo ano?
E será que o *can Jaime não terá já chegado a acordo com outro clube?