O estatuto dos treinadores
O imbróglio entre SC Braga, Botafogo, FC Arouca, Artur Jorge e Daniel Sousa deixou toda a gente mal, fruto da desregulação no estatuto de carreira do treinador. Há que tomar atenção às coisas certas.
Palavras: 1275: Tempo de leitura: 6 minutos.
Acabou mal, a história entre o SC Braga e Artur Jorge, porque na verdade não só ninguém tirou dela o que queria como ninguém ali ficou bem visto. Podem dizer-me que não, que o treinador conseguiu sair para o Botafogo a tempo de começar o Brasileirão, que era para onde ele queria ir, mas também me parece que não há quem goste de sair assim – como Daniel Sousa perceberá, quer no sábado ganhe a um SC Braga com o qual já se comprometeu por duas temporadas quer perca e acabe por ficar ao alcance das críticas dos adeptos e dirigentes do FC Arouca que ele revitalizou. A posição de Daniel Sousa é aquela que mais falatório vai provocar, mas não é sequer a mais duvidosa – nós, latinos, é que não temos a capacidade para encarar os contratos de trabalho no futebol como algo com termo certo e, em plena era do maxi-profissionalismo, ainda vivemos na ilusão do amor ao emblema. Mas isto não quer dizer – pelo contrário – que não seja importante mexer no estatuto de carreira do treinador. Porque é.
Fixemo-nos primeiro no caso concreto. António Salvador, presidente do SC Braga que até anda nos últimos anos mais calmo quando se trata de despedir treinadores – Ricardo Sá Pinto foi o último a experimentar-lhe o chicote, em Dezembro de 2019 – acusou Artur Jorge, o treinador em quem apostou no Verão de 2022 para substituir Carlos Carvalhal, de ter mantido negociações não autorizadas com John Textor, dono do Botafogo, e até apontou um local e uma data para a “traição”: Matosinhos, 25 de Março. Artur Jorge não disse nem que sim nem que não, podia sempre alegar que tinha ido só experimentar o marisco, porque estava ligado aos bracarenses por mais um ano, mas isso não esconderia que a relação do presidente e do treinador do SC Braga já conhecera melhores dias. Ao mesmo tempo que o enjeitado se vitimiza e garante que por ele era para a vida toda, até que a morte os separasse, aparecem os amigos de quem foi à procura da felicidade – no caso foi o filho do treinador, que foi formado em Braga mas joga no Farense – a justificar a quebra do laço com o comportamento do outro lado, que não terá sido igual na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. “Pessoas que mentem para se protegerem não são só mentirosas como também são cobardes”, escreveu o defesa dos algarvios numa story de Instagram, que entretanto já não está disponível.
Basicamente, como em qualquer casamento que se desfaz, o que está em causa é que o casal já não era feliz, mas antes de se separarem os dois lados querem deitar para cima do outro o ónus dessa infelicidade, quanto mais não seja para ficarem com a casa e a guarda das crianças. A perceção que tenho é a de que as coisas entre Salvador e Artur Jorge já não eram fluídas a ponto de se justificar o cumprimento do ano de contrato que restava. As notícias acerca do interesse do Spartak Moscovo no técnico, que passaram pelas páginas interiores dos jornais aqui há um mês e picos, não vieram seguramente do campo de Artur Jorge, a quem não interessava ir para a Rússia. Mas, achando eu que não vieram também do campo braguista – a fuga de informação era uma forma, isso sim, de acabar com o negócio – é inquestionável que a transferência até daria um jeitão a Salvador. É que o presidente do SC Braga não só já não acreditava que fosse Artur Jorge a dar-lhe o título com que sonha, como já tinha posto olhos em Daniel Sousa, o promissor técnico que levou o FC Arouca do último ao sétimo lugar da Liga, da ameaça de descida à tranquilidade com vista para a Europa. Ao mesmo tempo, sentindo que o presidente já tinha outro, Artur Jorge foi conversar com quem sentia que o valorizava, no caso o dono do Botafogo – outro que sofre de instabilidade crónica na relação com os treinadores que contrata.
Tudo certo? Não. Tal como não está tudo certo na concretização do interesse do SC Braga em Daniel Sousa na semana que antecede o jogo que vai fazer com o FC Arouca. E, antes que me acusem de querer espalhar a confusão, deixem-me esclarecer dois pontos. O primeiro é para dizer que não duvido nem por um instante que Daniel Sousa fará tudo para ganhar ao seu futuro clube. Já o acharia se estivesse em causa um objetivo mais palpável, como a entrada na Liga dos Campeões, mais ainda o acho quando o que está em disputa é a hipótese de os minhotos acabarem em terceiro, quarto ou quinto lugar. O segundo é para defender a normalidade da transferência – o que está em causa é só o timing. E a vitimização. Porque a verdade é que, mesmo considerando que as conversas de Artur Jorge com o Botafogo puseram em xeque “a posição de liderança que o treinador deve assumir”, bem como “o sucesso da temporada em curso e a visão a médio e longo prazo”, Salvador estabeleceu um preço para a separação. Tal como o fez Carlos Pinho, o presidente do FC Arouca, acerca de Daniel Sousa, mesmo que o seu filho Joel – e isto só não parece uma novela mexicana porque este é diretor-geral do clube – tenha considerado “inaceitável” a abordagem de Salvador ao seu treinador.
Daniel Sousa acaba contrato em Junho e tem todo o direito a procurar novo clube, tal como o SC Braga teria toda legitimidade para ir falar com ele, mesmo que fosse um jogador, que nos últimos seis meses de contrato já podia estabelecer negociações para mudar de camisola. Da mesma forma que o FC Arouca pode perfeitamente pedir o milhão de euros que pediu para o libertar já, porque tem sete jornadas por disputar e não quererá perder fulgor. A questão é que Daniel Sousa não é um jogador. Pertence a uma classe que tem o estatuto de carreira desregulado, a dos treinadores. A forma como os treinadores vão à procura de clubes que os façam mais felizes, nem que seja no imediato, quando estão sob contrato com outros, como fez Artur Jorge, não diverge em nada do modo como os clubes demitem técnicos a meio dos contratos sem contar pagar o que falta – e estes muitas vezes abdicam de receber porque numa classe com emprego tão precário quem faz valer os seus direitos corre riscos de ser posto de parte e de perder acesso ao mercado de trabalho.
Nada disto está bem regulamentado. E, sendo verdade que com umas pitadas de desonestidade intelectual e descaramento se poderia dar a volta a qualquer regra que venha a criar-se, tal como se dá a essa idiotice que é limitar o acesso a determinados patamares de carreira a quem já conseguiu vaga para obter o diploma de quarto nível – há sempre um diplomado para assinar e ir às flash interviews… – ou que nada poderia ser minimamente eficaz a não ser que fosse implementado a nível global, era bom que o setor vivesse debaixo de regras claras. Os treinadores têm hoje tanta ou até mais importância do que os jogadores nos projetos dos clubes. É impossível viver num futebol em que eles podem mudar de clube em qualquer altura da época e tantas vezes quantas quiserem – ou a isso os clubes os impelirem. Essa é a conclusão a tirar deste caso.
Salvador foi arrogante e errou ao não contratar já o Daniel Sousa. É curioso que se fosse ao contrário, António Salvador ia exigir uns 10 milhões ou mais, para libertar o treinador naquela situação. Basta lembrar como saiu Ruben Amorim para o Sporting e o que ele custou. Mais, terá recibo o dobro do que o Arouca pediu por Daniel Sousa, pela saída de Artur Jorge. Em vez disso negoceia com o Arouca para depois dizer que não e contratar Daniel Sousa pelas costas. Um milhão, no futebol profissional de alto nível, não é nada. Salvador desembolsava esse valor, escusava de andar a lavar loiça suja com Artur Jorge, começava já a preparar a época e acabava com qualquer mal estar ou suspeição, que vai acabar por existir.
Sim, a carreira de treinador tem de ser regulada, mas acabem com o disparate do ter de ter um curso para ser treinador. Em alguns casos, como se fosse eu a querer ser treinador, faz sentido. Agora exigir um curso a um ex-jogador, que viveu anos de futebol, que conheceu várias formas de trabalhar e vários sistemas e tácticas de jogo, que conhece tanto ou mais que quem ministra o curso de treinador, que vá tirar um curso, é absurdo. Falamos de uma profissão bastante técnica, não é um médico, nem um advogado, nem um engenheiro nuclear.