O escrete poucochinho
O Brasil tem três problemas a resolver antes de voltar a ser a maior potência do futebol no Mundo. Faltam-lhe mais jogadores focados em ganhar, um treinador de topo e dirigentes que entendam isto.

Palavras: 1445. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no meu Telegram).
O dia de hoje vai começar a definir o futuro da seleção brasileira no ataque ao Mundial de 2026. Ou pelo menos o próximo futuro, que os últimos tempos têm sido marcados por vários futuros em sucessão vertiginosa. Os 4-1 encaixados da Argentina no Monumental de Buenos Aires e, mais ainda, o baile mandado que foi o jogo, com superioridade alvi-celeste em todos os parâmetros e erros idiotas em pelo menos dois dos golos sofridos, tornaram insustentável a situação do selecionador, Dorival Júnior, porque provavelmente aguentá-lo também tornaria insustentável a situação do recentemente reeleito presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues. Os dois vão aparentemente encontrar-se esta tarde e está previsto que as conclusões da reunião sejam partilhadas amanhã com o resto da direção da Confederação, sendo divulgadas depois. E perigoso será que de repente se entenda que a culpa morre com o líder da comissão técnica. Ele é culpado, sim, nomeadamente de em ano e meio não ter conseguido fazer uma equipa e de mostrar um atraso estratégico evidente em cada partida face a adversários mais evoluídos, mas a bagunça vem de cima. E estende-se à base.
Dorival chegou à seleção em Janeiro do ano passado para substituir Fernando Diniz, que por sua vez tinha ocupado o lugar em Setembro de 2023. Diniz pegara na equipa para o arranque da fase de qualificação do Mundial em substituição de Ramon Menezes, que viera assegurar o interinato entre a saída de Tite, após a eliminação do Mundial do Qatar, em Dezembro de 2022, e a chegada do treinador estrela que aí vinha e que Ednaldo queria que fosse Carlo Ancelotti. Agora, quando se percebe que Dorival não tem a competência para fazer do Brasil um candidato à conquista da Copa, já se fala em nova promoção temporária do responsável dos sub20 para se voltar a lançar o canto da sereia a um treinador renomado. O problema é que tanto Carlo Ancelotti (Real Madrid) como os outros nomes falados, que são Felipe Luís (Flamengo), Abel Ferreira (Palmeiras) e até Jorge Jesus (Al Hilal) têm o ponto alto dos próximos meses marcado para o Mundial de clubes, em meados de Junho. E, antes disso, logo no início do mês, a 4 e 7, o Brasil terá a deslocação a Quito, onde defrontará o Equador, e a receção ao Paraguai, para somar os pontos que lhe faltam e garantir desde logo a presença na fase final do Mundial de 2026.
O que está em causa não é, não pode ser, a possibilidade de o Brasil vir a ficar fora do Mundial. Se não ganhar estes dois jogos ainda terá mais duas jornadas antes do final da qualificação. O alargamento da fase final para 48 seleções levou a que seis dos dez países que competem na América do Sul já se qualifiquem diretamente – e um sétimo ainda terá a possibilidade de disputar um playoff intercontinental com mais cinco equipas, onde os sul-americanos serão sempre favoritos. O que está em causa é a constatação de que a seleção brasileira não evolui, que não está mais equipa à medida que os meses vão passando. Culpa do selecionador? Sim. Primeiro que tudo na escolha da equipa, na incapacidade para ser coerente na definição de um onze preferencial. O Brasil apresentou esta semana apenas quatro titulares que tinham começado o 0-1 contra a Argentina, no Maracanã, em Novembro de 2023: Marquinhos, André, Raphinha e Rodrygo. Do outro lado, Lionel Scaloni repetiu oito nomes: Martínez, Molina, Romero, Otamendi, De Paul, Enzo Fernández, MacAllister e Julián Álvarez. Ganhou de chocolate até sem Messi, desta vez substituído por Thiago Almada. O jogo de 2023 foi com um selecionador diferente (Fernando Diniz) pelo que se entende a revolução, dir-me-ão. Certo. Mas nas três últimas partidas – e alargo o lote a três para que não se confunda a inconstância com uma rotatividade que é própria de jogos tão próximos como são os dois de cada data FIFA – Dorival apresentou três guarda-redes: Ederson, Allison e Bento. Três laterais direitos: Danilo, Vanderson e Wesley. Três pontas-de-lança: Igor Jesus, João Pedro e Matheus Cunha. Marquinhos e Raphinha foram os únicos totalistas.
Serão as lesões de Gabriel Magalhães, Bruno Guimarães e Gerson antes da ida a Buenos Aires suficientes para explicar toda esta mudança aparentemente sem critério? Em parte, sim. É possível que com o central do Arsenal, o médio do Newcastle United e o seu parceiro do Flamengo não se visse um Brasil tão diferente e sobretudo tão frágil em campo. Mas será o panorama à disposição de um selecionador brasileiro assim tão rico, a ponto de o levar a tanta hesitação na escolha da equipa? Não é, de todo. Um dos problemas da atual seleção brasileira é que os seus jogadores não estão habituados a jogar reiteradamente para ganhar. Há 15, 20 anos, os integrantes do escrete jogavam nas equipas mais fortes da Europa, repetiam partidas na Champions. Há 30 ou 40 anos estavam nos maiores clubes do seu país. Anteontem, o Brasil entrou no Monumental com dois jogadores do Wolverhampton WFC (e ainda saltou mais um do banco), um do Nottingham Forest, um do Newcastle United, um do Al Nassr... O dinheiro impôs-se ao currículo e destruiu as carreiras como as entendíamos. E isso não é tudo. Parte do descalabro explica-se com a incapacidade do selecionador para gizar um plano de jogo detalhado que vá além do 4x4x2 ou do 4x2x3x1. André fez um jogo fraco a meio-campo, mas a ideia que ficou foi a de que ele esteve sempre perdido entre a vontade de pressionar Paredes para compensar a falta de compromisso defensivo de quem tinha à sua frente e a necessidade de conter Enzo Fernández e MacAllister, porque o Brasil não definira a forma de controlar as movimentações ofensivas dos dois médios argentinos mais soltos para os meios-espaços do ataque.
No Brasil, há cada vez mais um complexo de inferioridade dos treinadores face aos europeus que para lá vão trabalhar, sobretudo os portugueses, mas centra-se o problema no aspeto físico e no rigor defensivo, quando o que mais se distingue entre o trabalho de Dorival e o de Scaloni, o técnico que passou 20 anos entre Espanha e Itália antes de pegar nos sub20 da Argentina e de depois se tornar selecionador principal, é que só um dos dois tem ideias relativamente a aspetos concretos do jogo. Não é uma batalha entre o futebol livre e o futebol agrilhoado. É a diferença entre ter um plano de jogo ou uma vaga ideia de um sistema tático. É verdade que o ar sempre atarantado de Dorival na linha lateral não ajuda, não nos leva a achar que ele saiba o que faz – e nada pode ser tão mau como parece... – mas a ideia que fica é a de que entre ele e Scaloni só um dos dois entende que o futebol de uma equipa depende de detalhes trabalhados e não apenas nem sobretudo de uma ideia-base que manda colocar dois volantes, dois pontas, laterais a apoiar, um atacante de área e outro a mover-se nas suas costas. Ou a fechar o lado da bola e depois, por ausência de pressão sobre o portador, permitir que ela entre do outro lado.
Ganhou por estes dias nova vida uma entrevista de Dorival ao Denílson Show, há três anos, na qual o agora técnico da seleção brasileira disse que visitou cinco clubes na Europa e não aprendeu nada por cá (está aqui o programa completo). Devia ter aprendido? Sim, sem dúvida. Provavelmente não esteve com atenção ao mais importante. Mas não deixa de ter razão numa coisa que também diz: o Brasil dá pouco tempo aos seus treinadores, porque quem está acima deles não entendeu ainda o problema em toda a sua extensão. A lei das SAF (detalhes aqui) permitiu ao futebol brasileiro um à-vontade financeiro que os maiores clubes do país há muito não tinham, mas falta agora que quem manda na CBF entenda que o papel que tem a desempenhar não é segurar a cartola despedindo treinadores em nome da própria sobrevivência. É criar condições para que os treinadores aprendam com os melhores – alguns sul-americanos, mas habituados à exigência e ao detalhe do futebol europeu, como estou convencido de que pode ser Felipe Luís, por exemplo – e para que os jogadores prefiram o currículo à quimera das equipas pequenas e médias da Premier League. Quando o conseguir, o escrete deixará finalmente de ser poucochinho.