O Enzo estava ali
Enzo Fernández repetiu o gesto de Ronaldo naquela noite de 2013, em Estocolmo. Um salvou a equipa, o outro foi salvo para ela. Tal como Cristiano em 2013, Enzo, ontem, estava ali. Amanhã se verá.
Cristiano Ronaldo não celebrou sempre os seus golos com aquela corrida em direção a uma bandeirola de canto seguida de um salto, com meia-volta no ar, e da aterragem com o peito estufado, os ombros e os braços para trás enquanto solta o grito que ninguém percebeu ainda muito bem se é “Sim” ou “Siiii” ou “Siuuuu”, o que quer que isto signifique em dialeto luso-castelhano-madeirense. Numa noite de 2013, em Estocolmo, quando a qualificação da seleção para o Mundial de 2014 tinha sido posta em dúvida, o capitão fez um “hat-trick” histórico e, antes da coreografia habitual, apontou primeiro para o peito e depois para o relvado, a dizer o mesmo que Enzo Fernández quis dizer ontem depois de marcar o segundo golo do Benfica ao Varzim, um golo que punha termo à discussão e confirmava que as águias seguiam mesmo para os quartos-de-final da Taça de Portugal: “Eu estou aqui!”. As ocasiões não são em nada semelhantes, os jogadores também não, e até a intenção não foi mais do que aparentada. Naquela noite, Ronaldo mostrou aos portugueses e ao mundo que estava lá para resgatar a equipa. Na noite em que voltou do desvario que o Mundial e o mercado lhe causaram, Enzo tinha intenções bem mais modestas: só quis mostrar aos benfiquistas que estava de volta à equipa. Um mostrou que era o salvador, pôs o foco no “Eu” – e por isso mesmo apontou para o peito antes de se referir ao relvado como complemento indireto – e o outro que tinha sido salvo, pondo o foco no “Aqui” – e por isso bateu com força no emblema, transformando-o em sujeito da demonstração de um misto de testosterona com sentido de pertença. Os três golos de Ronaldo à Suécia de Ibrahimovic forçaram a reabertura da votação da Bola de Ouro, que o português ainda ganhou no “photo-finish” debaixo de aclamação de muita gente que, uns meses depois, no Mundial, já o julgou como origem de todos os males. O golo de Enzo ao Varzim não teve qualquer valor prático a não ser o de instigar a comunhão entre o jogador e os adeptos que na semana passada já tinham decretado que ele não honrava os valores do benfiquismo e agora não podem esperar por vê-lo no dérbi de domingo, com o Sporting. Tal como o Cristiano naquela noite de 2013 em Estocolmo, o Enzo, ontem, estava ali. Amanhã se verá.
É dia de festa. Não tenho visto jogos da Liga 3, mas se o nível for aquele que o Varzim mostrou ontem, contra o Benfica, estará ali um belo campeonato. Gostei de tudo. Solidez defensiva, boa organização, capacidade para sair a jogar da pressão e até, em determinado momento, a vontade de chegar à baliza de um adversário que é muito mais forte mas nunca conseguiu ser opressor. O Varzim de Tiago Margarido é uma belíssima equipa, a honrar um bom relvado e um estádio maravilhosamente preenchido com adeptos que conseguiram a rara proeza de fazer o Benfica jogar mesmo fora de casa, algo que é raríssimo até na Liga principal. Acredito que não seja sempre assim. Que a equipa não jogue sempre tão bem como ontem e também que a massa adepta seja bastante menor no domingo-a-domingo da Liga 3, porque do outro lado não está sempre um grande e há outras coisas a fazer que não ir à bola. E é pena, porque, sim, as duas coisas estão ligadas. Como podem os adeptos exigir seja o que for às suas equipas se não fazem a sua parte, que é estar lá para os incentivar, fazê-los correr pelo orgulho que é defender as suas gentes. A malta que se queixa da morte do “amor à camisola” devia olhar primeiro para si própria e para o amor que só dá aos que vestem a camisola em dias de festa nos quais do outro lado está um grande.
É seguir em frente. Há um Sérgio Conceição que vive dentro do Sérgio Conceição que iguala a bate recordes de José Maria Pedroto aos comandos do FC Porto que anseia pela aprovação unânime, até daqueles que personificam o “centralismo” contra o qual Sérgio Conceição luta. Alguém devia lembrar-lhe que isso não vai acontecer nunca, que nunca acontece a ninguém. Nem a Pep Guardiola, que ontem voltou a ser assunto a propósito de um FC Porto-FC Arouca. Porquê? Porque em Dezembro de 2020, depois de um 0-0 no Dragão, a contar para a Liga dos Campeões, o treinador espanhol do Manchester City criticou a estratégia defensiva posta em prática pelo português. Depois de empatar no Jamor com um Casa Pia muito defensivo – e nem vem muito ao caso debater se tinha dez jogadores ou onze... – Sérgio Conceição voltou mais de dois anos atrás no tempo e clamou por justiça, como o menino a quem a professora ralhou por ter feito exatamente o mesmo que outro menino que passou impune e ainda foi parar ao quadro de honra. “[No jogo com o City] fui super-criticado porque não chegámos à baliza, mas depois vejo nos outros competência e solidez defensiva”, lamentou-se Sérgio Conceição. Desconheço se alguém levou a mensagem a Guardiola, mas também não importa, porque estou convicto de que há um Pep Guardiola que vive dentro do Pep Guardiola que vai somando títulos à frente do City que anseia pela aprovação unânime, até daqueles que personificam a luta contra os clubes-estado e acham que ele só ganha porque o Abu Dhabi lhe faculta o acesso a bolsos sem fundo para reforçar mais e mais a equipa. Como o Sérgio Conceição que no final desse jogo disse que “[se fosse o Guardiola] também ficaria chateado se não ganhasse, com esta equipa e orçamento”. Aconteceu-lhe agora, contra o Casa Pia. E, confirma-se, ficou chateado. Está tudo bem. É seguir em frente.