O engodo da partilha do passe
A partilha dos passes é vista pelos clubes mais pequenos como forma de capitalizar mais valias em passagens pela Liga dos Campeões, mas muitas vezes funciona como travão às transferências.
Chega-se a Maio e não só as páginas dos jornais começam a encher-se de notícias de mercado como os programas de televisão que gravitam à volta do futebol acentuam a tendência para se dedicarem ao tema pungente das transferências, antecipando conversas que costumavam ficar guardadas para Julho e Agosto. Mas se há uns anos, quando os jornais em papel faziam as vezes dos telemóveis no areal, a chegada de novos craques só era a animação dos dias de praia quando eles já cá estavam, hoje aquilo que se discute são mais vezes as saídas – veio o capitalismo e, com ele, o “modelo de negócio” baseado nas mais-valias... – e as percentagens dos passes que os clubes têm. Entre os toldos e os chapéus de sol montou-se uma espécie de Bolsa de Valores responsável pela mudança dos apetites. Já não nos interessa os golos que um brasileiro desconhecido vai fazer, mas sim os milhões que aqueles que cá estão nos podem garantir. Esse modelo de partilha de passes, que os mais conhecedores dos veraneantes até sabiam que se praticava em Itália desde os anos 80, como particularidade nos empréstimos, tornou-se recentemente a forma mais corrente de lutar contra as vicissitudes de um futebol financeiramente periférico como o nosso: os grandes não são assim tão poderosos a ponto de quererem e poderem bater na mesa o dinheiro que os pequenos querem pelos seus jogadores e estes, guardando parte dos passes dos craques que ajudaram a revelar, não só facilitam os negócios como ficam a sonhar com o aumento exponencial das mais-valias que a exposição aos relvados da Liga dos Campeões pode proporcionar-lhes. Pois bem, muitas vezes, a partilha dos passes acaba por ser um engodo sem prémio no final, porque ao mesmo tempo que permite aos menos remediados acalentar esperanças de um ano de orçamento pago, torna os negócios muito menos atrativos para os grandes, que têm a faca e o queijo na mão, pois são os detentores dos direitos desportivos e dão a última palavra em cada negócio. Já se viu isso, ainda que nesse caso por causa de contornos pouco claros no negócio anterior, entre o Vitória FC e o Málaga CF, e devido ao facto de os espanhóis terem ficado sem opções, quando o SC Braga percebeu que não tinha nada a ganhar na transferência de Ricardo Horta para o Benfica, porque os 10 por cento que tem no passe são uma ninharia face aos 100 por cento de que dispõe dos golos, dos dribles e dos passes do jogador. E vai voltar a ver-se quando o FC Famalicão capitalizar os meros 10 por cento que ainda dispõe no passe de Ugarte mas se vir eternamente agarrado aos 50 por cento que tem de Pedro Gonçalves. Sim, é verdade que o médio uruguaio registou uma progressão notável desde que deixou de ter Palhinha a cortar-lhe o espaço, mas o atacante português já foi o melhor marcador da Liga no ano do título e está na luta para repetir a proeza esta época, na qual ainda comanda a lista dos assistentes. A partilha dos passes pode até parecer um promissor El Dorado para os clubes menos grandes, mas acaba muitas vezes por ser o equivalente ao envelhecimento do jogador, de que vos falei a propósito de Uribe ou Taremi. Se os jogadores se aproximam dos 30 e ainda dão rendimento, não se vendem, porque aquilo que o mercado vai dar por eles não chega para compensar o que eles dão em campo. Se um jogador do qual se tem apenas 50 por cento do passe não está no topo das preferências quando se fala de craques a exportar é por uma razão muito simples: o que quem decide pode ganhar não compensa, nem pouco mais ou menos, aquilo que vai perder em campo. É por isso que a partilha dos passes é um engodo.
O futuro (não) é negro. A Liga Portugal e a Ernst & Young desenvolveram um plano com 30 ideias para aplicar em quatro anos ao futebol nacional, de forma a sintonizá-lo com o futuro – o resultado foi libertado e está nas páginas do Record de hoje. Há lá coisas evidentes, como há coisas ambiciosas e há outras absolutamente básicas, mas basta continuar a folhear o jornal para ver como estamos muito longe de as conseguir sequer vislumbrar. Já nem vou ao que disse Frederico Varandas a propósito da arbitragem, porque concordando com o diagnóstico do presidente do Sporting, discordo em absoluto da terapêutica, que passa necessariamente por termos clubes mais conscienciosos e relutantes a deixarem-se cair no ato ignóbil da pressão pública. Também já o tinha dito aqui, quando avaliei o trabalho de Soares Dias no Santiago Bernabéu. Mas é seguir com as páginas... Com a confusão montada pelos stewards no Benfica-SC Braga, com o gesto de António Salvador nas bancadas e, o que pode parecer menos importante, até por só ocupar duas colunas, mas que é absolutamente fulcral, com a notícia acerca da possibilidade de mudança do Casa Pia do Jamor para o Restelo, porque as obras em Pina Manique, que era suposto deixarem o estádio dos gansos pronto para a Liga principal a meio desta temporada, ainda nem começaram. Do que o futebol nacional precisa, antes de um modelo de governação capaz, de uma Liga mais forte e de estudos feitos por consultores externos é de clubes em condições. De clubes que vejam que sem casa dificilmente terão futuro. Ou que, no caso do Casa Pia, que veste de preto e até é dos que têm uma gestão mais profissional e sintonizada com o futuro, que percebam que esse futuro assim se torna cada vez menos negro.
O regresso dos psicossomáticos. Já vos contei uma vez a origem do termo “psicossomático” no jornalismo desportivo em Portugal. Coincidiu com o advento dos jornais desportivos diários e a necessidade de encontrar assunto quando a atualidade não chegava. Apareceram os estudos estatísticos, os primórdios básicos – porque feitos com poucos meios – do “data journalism” acerca do futebol português. O João Pedro Abecassis, meu antigo colega de bancada, era um repórter natural e odiava esse tipo de serviços, que o obrigavam a lamber números e o tiravam da rua, que era onde ele se sentia bem. Começou então a chamar-lhes “psicossomáticos”, vá lá saber-se porquê – e o termo ficou. Hoje em dia, os “psicossomáticos” são o pão nosso de cada dia nos jornais e o que é pior é que os tempos da sua pureza original estão tão longe que se tornaram meios de piscar o olho aos adeptos que querem acima de tudo que lhes digam que os clubes deles são os maiores e que os rivais são os piores, a única forma de os jornalistas deixarem de parecer “avençados” aos olhos de uns – ainda que os transforme inevitavelmente naquilo que procuram evitar aos olhos dos outros. Só hoje, ficámos a saber em dois jornais diferentes que o FC Porto tem o ataque menos produtivo e a defesa mais sólida dos seis anos de Sérgio Conceição. As duas análises foram bem feitas, deram trabalho aos autores, e provavelmente são os meus olhos que, ao vê-las separadas em vez de complementares, as reputam de formas de ação política ou de marketing clubístico, ainda por cima não remunerado, porque não coloco em causa a honestidade dos autores. Quase nove anos depois de ter saído dos jornais, sou eu que estou desatualizado. Estou como o Abecassis quando lhe tiraram a rua – só me falta encontrar um termo para esta realidade.