Noite de artilharia
O Real Madrid-Manchester City foi quase tudo o que dele se esperava. Não teve os pontas-de-lança, mas compensou em complexidade tática e em dois golaços de artilharia pesada, de Vini Jr. e De Bruyne.
Podemos olhar para o Real Madrid-Manchester City de ontem de várias maneiras. É possível ver a excelência dos laboratórios táticos de ambos os campos, a capacidade de duas equipas superlativas para marcar nos momentos em que estavam por baixo, a beleza estética de dois golos obtidos pelos dois génios mais brilhantes que pisaram o relvado do Bernabéu ou até, se somos daqueles que gostam de ver os copos meio-vazios, a falta de comparência dos pontas-de-lança. Benzema e Haaland esqueceram-se de aparecer, como se tivessem passado a noite a passear pela Castellana. Isso não pode ser atribuído a um qualquer défice de qualidade, que vos falo do Bola de Ouro da France-Football em 2022 e do fenómeno mais publicitado do futuro do futebol, mas sim à maneira como o jogo se montou, que não era para exigir o que quer que fosse de nenhum dos dois a não ser que estivessem lá, que ocupassem o espaço, que chocassem umas quantas vezes com Rúben Dias e Rüdiger e lhes deixassem, sob a forma de hematomas, algumas memórias que eles preservem para ocasiões futuras, para jogos que sejam montados de outra forma. Mas se o jogo do ano não pôde mostrar os seus dois maiores monumentos à capacidade metralhadora, não foi por isso que deixou de ter artilharia pesada. Os golos de Vinicius Jr. e de De Bruyne saíram de dois disparos de muito longe, imparáveis e com as coordenadas certas, estranhamente em alturas em que as equipas que os celebraram estavam a passar dificuldades. Os madridistas marcaram numa altura em que o City lhes tinha tirado e escondido a bola e em que esta, depois de ter escolhido Camavinga, num momento de pressão falhado de Bernardo Silva, em ato de revolta, correu livre à frente do brasileiro, a convidá-lo a dar-lhe com toda a força que ele tinha na perna direita. O remate foi imparável e de uma eficácia só comparável à da bomba com que De Bruyne obteve o empate, na segunda parte. Nessa altura, já era a equipa de Guardiola quem sofria para ter a bola, mas Bernardo estabeleceu uma nova lei no futebol: o que a lateral tira, a lateral dá. O português controlou em cima da linha – para cá, para lá, ninguém sabe... – uma bola que no entanto ainda passou pelos pés de Camavinga antes de Gundogan a pôr, no timing exato, à frente do pé direito do artilheiro belga, para um remate que nem Courtois, o que há de mais próximo de um guarda-redes com capa de super-herói, conseguiu frustrar. A meia-final vai empatada para Inglaterra, a consumar aquilo que já estava na maior parte das previsões: não vamos ter um jogo do ano, mas sim dois. E o segundo é já para a semana.
Vocês três, formem um quadrado. O Bernabéu permitiu ver, ao mais alto nível, a mais recente inovação tática de Guardiola para atrair e contornar as organizações defensivas adversárias. É como se o catalão se tivesse inspirado na blague tantas vezes atribuída a Jorge Jesus e gritasse aos seus médios: “Vocês três, aí, formem um quadrado”. O City joga com três médios, que no desafio de ontem foram Rodri, Gundogan e De Bruyne. Mas em posse o defesa-central Stones sobe no campo, para fazer quarto centrocampista, estabelecendo um meio-campo disposto num quadrado, com Rodri e Stones atrás, Gundogan e De Bruyne à frente. A ideia é evidente. As equipas que se defendem com dois médios-centro, ou se veem forçadas a afundar os seus dois atacantes para seguirem Stones e Rodri ou deixam que a estes sejam atraídos os seus dois médios, dessa forma libertando Gundogan e De Bruyne nas suas costas. As equipas que, como é o caso do Real Madrid, defendem com três médios – ontem Kroos, Valverde e Modric – encaixam os dois mais avançados em Stones e Rodri e deixam o mais recuado a olhar para os dois lados, sem saber se a bola vai entrar na sua esquerda, em De Bruyne, ou na sua direita, em Gundogan. A solução acaba por ser sempre chamar à equação os médios-ala, pedir-lhes que fechem dentro. E é aí que o City saca da carta dos extremos, Bernardo Silva, ainda mais encostado à linha do que nos sonhos mais húmidos de Fernando Santos, e Grealish, a fazer a mesma coisa do outro lado. Como todas as ideias, esta nasceu para ser contrariada. Mas abre-nos os olhos para o futuro do futebol. Qual quê? Para o presente do futebol. Os híbridos são o segredo do sucesso de qualquer equipa.
O poder dos media. Só os espanhóis não gostaram da arbitragem de Artur Soares Dias, mas a verdade é que ninguém consegue, com certeza absoluta, garantir que a bola que Bernardo Silva recuperou em cima da linha lateral antes do golo de De Bruyne estivesse dentro ou fora do campo. De resto, aquilo que Carlo Ancelotti tinha a reclamar do árbitro português eram mais amarelos, o que vai bater naquilo que mais gostei, que foi a preocupação demonstrada por Soares Dias em manter o jogo fluído, em não apitar por tudo e por nada e em não abusar da ação disciplinar. Nesse aspeto, o árbitro de ontem foi o oposto daquilo que são os juízes em Portugal. Porquê? A razão é simples e tem que ver com o poder dos meios de comunicação social. É que ontem Soares Dias sabia que não ia ter em cima dele os tribunais televisivos dos comentadores-adeptos a escrutinar cada frame e a virar contra ele a ira popular. Pode até ser instintivo, mas é isso que torna a arbitragem portuguesa mais defensiva e, ao mesmo tempo, absolutamente indefensável. O racional é simples de explicar e começa na saturação de um mercado de media que, em Portugal, é demasiado pequeno para a quantidade de meios que alberga. Isso leva a que as TVs e os jornais só consigam viabilizar-se financeiramente com uma quota de mercado muito alta e gera uma corrida desenfreada às audiências. É nesse âmbito que devem ser vistos os programas de comentário futebolístico com comentadores-adeptos, que geram sempre sentimentos extremos – repugnância de quem sofre por cores diferentes e aplauso de quem partilha a mesma afiliação. Daqui à entrada em ação das máquinas dos clubes, na instrução dos adeptos com palco, é um pequeno mas decisivo passo. E daqui até à pressão insustentável sobre os árbitros é outro, levando a que, depois, no campo, os juízes se defendam e apitem por tudo e por nada, com receio de deixar escapar a mais ligeira infração, destruindo o jogo de caminho. Os nossos árbitros não são piores do que os estrangeiros. O problema é que lhes damos demasiada atenção.
é a manada dos 3 grandes, funcionam como um rebanho, vão sempre atrás uns dos outros sem ter pensamento crítico