O elogio da liberdade
Uma entrevista de Danny Cipriani, o meu jogador de rugby favorito dos últimos anos, levou-me a questionar a rigidez que o domínio do homem sobre o físico trouxe também ao futebol. Dá que pensar.
Durante anos, o meu jogador de rugby favorito foi Danny Cipriani, uma espécie de Ricardo Quaresma da oval, ainda que com uma diferença: ao contrário do extremo português, que foi sempre muito focado na carreira, o antigo médio-de-abertura dos Wasps, dos Sale Sharks, do Gloucester e da seleção inglesa – quando os botas-de-elástico lho permitiam – tinha a cabeça toda lixada e uma vida demasiado agitada para poder expressar todo o seu potencial. E se, apesar de estar iminente a estreia da seleção nacional no Mundial – é já no sábado, contra Gales – não quer saber de rugby para nada, escusa de se ir já embora, que este texto é sobre futebol. Mais: é sobre a vida. Cipriani tinha uma faísca que o tornava especial, porque para cada situação encontrava sempre a saída mais inesperada e surpreendente. Era um jogador imaginativo, criativo, sempre em contra-corrente com a evolução que tem tornado o desporto mais físico e brutal nos últimos anos. “Eu não era um rebelde, era um decisor”, conta Cipriani numa entrevista hoje publicada pelo The Guardian, onde deixa respostas à pergunta que há dias fiz ao meu amigo João Telhada, depois de mais uma expulsão de um jogador inglês, no caso Tom Curry, na estreia da equipa da rosa no Mundial, contra a Argentina. Para quem está habituado ao corrupio de cartões vermelhos no futebol, há que dizer que no rugby eles são raríssimos, mas que mesmo assim a Inglaterra está neste momento sem três titulares à conta de suspensões provocadas por expulsões (Farrell, Vunipola e Curry). “O que se passa com os ingleses? Eles jogam com umas regras à parte no campeonato deles?”, perguntei eu ao João, ainda sem perceber que estava a abrir o paralelismo com o futebol de Portugal. O João não chegou a responder-me e eu não insisti, porque achei que ele devia certamente estar a ver um jogo do inter-regiões da Tasmânia, que ele vê rugby em todo o tempo livre de que dispõe. Até que o Cipriani respondeu por ele. “Quando obrigas os teus jogadores a aumentar a massa muscular, que é necessária num jogo físico, e os treinas num ambiente baseado no medo, eles vão correr pelo campo de uma forma rígida e causarão mais concussões. Não há fluidez de movimento. Há muito mais choques de cabeças. Podia ser diferente se os jogadores fossem encorajados a correr para o espaço e a fazer passes que evitassem a entrada em situações de placagem dupla”, diz Cipriani. Tenho as maiores dúvidas acerca daquilo em que Cipriani parece ter-se tornado quando fez as pazes com o seu passado atribulado, não me espanta que venha a ser mental coach e defensor de um positivismo tão exacerbado que se torne tóxico, mas foi neste momento que transpus as palavras dele para o futebol e me lembrei de uma coisa que há dias também tinha perguntado ao meu amigo Jorge Andrade. “Olha lá, no teu tempo de jogador já havia tantos pisões como há hoje? É que vejo futebol há mais de 40 anos e não me lembro de os ver?”, perguntei-lhe, num daqueles momentos em que estamos a ver os jogos na RTP antes de irmos para estúdio. O Jorge, que está sempre na brincadeira, não chegou a responder. O meu palpite, no entanto, é que a responsabilidade seja da rigidez das marcações, do crescente encorajamento que os treinadores fazem da disputa das bolas divididas, em vez de focarem os jogadores na mais inteligente exploração dos espaços, daquilo a que no rugby se chama o lado aberto. É essa automatização tática que, servida pelo crescente domínio do plano físico, está a tornar o futebol mais perigoso. No fundo, a lição de Cipriani, de um tipo que esteve sempre contra os cânones da sociedade, que acabou por nunca se impor ao mais alto nível por causa disso mesmo, é uma admissão de fracasso. O que ele nos diz é que podes andar sempre em contra-corrente mas acabas por levar com aquilo que decidem os poderes instituídos. Que a liberdade criativa deve ser privilegiada e elogiada mas nunca é mais forte do que a rigidez daqueles que são os verdadeiros manda-chuva. E que o papel de quem gosta do jogo tem de ser o de questionar essa realidade. Quando conseguir, tenho de falar nisso ao Quaresma. Que, para quem chegou aqui porque se fala de rugby e não quer saber de futebol para nada, é assim uma espécie de Cipriani da bola redonda.
O fracasso de Santos. Quem também fracassou foi Fernando Santos, demitido da seleção da Polónia ao fim de nove meses e com a qualificação para o Europeu em perigo. Dificilmente as caraterísticas de Santos encaixariam no que pede esta equipa polaca, um reflexo da sociedade local, na medida em que é um misto do futebol mais robotizado do antigo bloco de leste com o descaramento e a liberdade que levaram, por exemplo, à criação do Solidariedade, nos anos 80. Ainda hoje me lembro do espanto com que, em 1983, um ano depois de ver os polacos atingir as meias-finais do Mundial, ouvi pelo direto televisivo o público de Wroclaw apoiar e vitoriar a seleção portuguesa que foi lá ganhar por 1-0, mantendo-se assim bem viva na corrida em que viria a impor-se pelo apuramento para o Europeu de 1984 – é que se não fosse Portugal, naquela altura, quem se apurava era a URSS e isso é que os polacos não queriam nem por nada. Além de conhecer necessariamente pouco do ambiente geral do inescrutável futebol polaco, Santos deparou-se à chegada com o declínio de uma geração que o marcou nos últimos anos e com o fantasma de Marek Papzun, que se tudo correr normalmente será o seu substituto. Papzun, que pode ficar a conhecer melhor no episódio dos Reis da Europa acerca do Rakow (a ler aqui), adversário do Sporting na Liga Europa, já estava na calha para o cargo quando lá chegou Paulo Sousa, em Janeiro de 2021 e tem pairado sobre todos os que comandam a equipa, até pelo apreço que por ele tem toda a imprensa local. E não há como deixá-lo dar uma voltinha a ver como corre.
A Supertaça feminina. É inevitável que os que viram os jogos decisivos do Mundial feminino tenham ficado um pouco dececionados com a qualidade geral do espetáculo oferecido ontem na Supertaça feminina, que terminou com a vitória do Benfica sobre o Sporting, no desempate por penaltis. Havia espaço para jogar, mas o que vi foram duas equipas pouco competitivas nas acelerações para o explorar, dando a ideia de uma condição atlética frágil. Até podia ser a resposta de Cipriani, mas não foi, que as decisões também foram mais vezes más do que boas. Pode ser impopular dizê-lo, mas o futebol feminino ainda tem um longo caminho a percorrer em Portugal e não subirá o nível enquanto não houver competição a sério numa base regular, enquanto uma equipa for tão melhor do que as outras que consegue ser campeã com 21 vitórias em 22 jogos, 17 das quais por pelo menos três golos de diferença. O Benfica começa a ter um espaço dentro do panorama internacional, o que é excelente, mas precisa de quem o acompanhe internamente para crescer e assim fazer crescer toda a Liga.