O dia da Marmota na Luz
Os 6-1 do Benfica ao SC Braga trazem à memória um 6-2 de Dezembro de 2018. Carvalhal disse o mesmo que afirmara Abel na altura. E Rui Vitória só aguentou mais duas semanas no Benfica.
E, de repente, o Benfica enfiou seis golos no SC Braga. “Está resolvida a crise”, dizem alguns adeptos mais otimistas. “Foi uma vitória brilhante e uma noite perfeita, mas não somos uma super-equipa por este resultado”, contemporizou Jorge Jesus, que sabe bem que o futebol é ao mesmo tempo uma coisa e o seu contrário e certamente se recorda do que aconteceu a Rui Vitória, o seu sucessor na Luz: em vésperas de Natal de 2018 estava a ganhar por 6-2 em casa ao SC Braga e a festejar a sétima vitória consecutiva e, logo a seguir ao ano novo, uma derrota em Portimão (0-2) levou à sua saída do cargo e à entrada em funções de Bruno Lage, que ainda foi a tempo de ser campeão.
Esse jogo de há três anos teve mais uma particularidade que me faz lembrar o extraordinário “Feitiço do Tempo”, o filme de Harold Ramis em que o meteorologista interpretado por Bill Murray vive incessantemente o mesmo dia – o dia da Marmota – até ser capaz de quebrar o padrão. É que no final, o treinador do SC Braga, Abel Ferreira, disse praticamente o mesmo que afirmou ontem Carlos Carvalhal. “Mais vale morrer [ser goleado] do que sacrificar aquilo em que acreditamos. Hoje, mantivemos a nossa identidade, mas cometemos erros que não costumamos cometer”, justificou-se na altura o homem que na altura ainda ficou em Braga até final da época, mas depois veio a sair pelo seu próprio pé, e que, tal como Jesus, veio a ganhar uma Copa Libertadores. “Assumo a responsabilidade, porque quisemos jogar da mesma forma de sempre e hoje não tínhamos energia”, explicou ontem Carvalhal, trazendo para o debate a diferença de rotação entre as duas equipas, em virtude dos dois dias a mais de repouso que o Benfica teve desde o seu jogo europeu.
O jogo de ontem foi um pouco de tudo isso. Não é exatamente correto dizer que a diferença entre as duas equipas não se percebeu até à ponta final da primeira parte, quando o desgaste terá começado a fazer-se sentir no SC Braga, como não o será sustentar que só aí se notou o peso das opções estratégicas tomadas pelos dois treinadores – defesa alta do SC Braga e um ataque mais móvel e rápido do Benfica, em resposta a esse convite –, uma vez que o primeiro golo do jogo, bem madrugador, já foi um exemplo da mossa que os atacantes encarnados iam fazer. Mas é certo que, depois do golo do empate de Ricardo Horta e das lesões de João Mário e Lucas Veríssimo, o Benfica tinha tudo menos o jogo ganho. Aliás, esse foi o momento em que parecia que as coisas podiam bem ter corrido de outra forma. Era um engano, porque a equipa do SC Braga não tinha de facto a energia necessária para continuar a jogar assim. E Rafa, Darwin e Everton souberam aproveitar.
Mas estará o SC Braga de volta aos tempos em que, dia após dia, se dizia que Carvalhal tinha as malas à porta? E o Benfica? Afinal não está em crise mas sim num momento pujante de classe, que mais do que a substituição do treinador recomenda que lhe renovem o contrato por mais três anos? Vamos com calma. Os bracarenses mostraram bons princípios naqueles 20 minutos em que reagiram ao soco no estômago que foi o golo de Grimaldo logo a abrir. Tomaram conta da bola e do jogo e pareciam justificar mais do que o empate. E o Benfica não foi, nesse período, exemplo de segurança e solidez, mas depois foi sagaz, acabando por seguir para a goleada com contra-ataques a explorar as debilidades de um adversário deslumbrado. O caminho entre resultados e exibições faz-se de ida e volta. Nem são só as exibições e a qualidade de jogo a justificar os resultados, como há depois efeitos visíveis da acumulação de resultados nas exibições que uma equipa é capaz de produzir.
A perder, já se sabe, tudo é mau. A ganhar, tudo é belo. Eu já tinha escrito sobre isso aqui. A ganhar, como lhe aconteceu nas últimas semanas, Carvalhal é “coerente, sabedor, bom estratega” e até se recorda que ele criou uma forma de jogar única, com o papel duplo de central e lateral esquerdo personificado por Sequeira, também ele lesionado no jogo de ontem. Já a perder é ao mesmo tempo “vaidoso e inseguro”. Da mesma forma, a ganhar, Jesus é o “mestre da tática”, o homem que coloca o Benfica a jogar o futebol vertiginoso que lhe deu títulos, que inventou o quinto momento do jogo, os três centrais e tudo o que se quiser agora. Mas a perder é o treinador sem noção que, com a sua falta de saber-estar, germina conflitos com os jogadores, como os que animaram a última semana de debates televisivos.
“Eles querem é share”, diz o treinador do Benfica – e não deixa de ter razão. “Não tenho problemas com o treinador”, assegura Otamendi, que muitos já esperavam ver crescer para Jesus se o jogo de ontem corresse pior. Mas também isto deve ser relativizado. Esta é a parte do Dia da Marmota que corre bem, a parte em que Bill Murray se cruza com Andie McDowell. Agora vêm aí as seleções. O Benfica só joga a 19 com o FC Paços de Ferreira e o SC Braga a 20 com o Santa Clara, ambos em partidas da Taça de Portugal. Nestas duas semanas se verá se são capazes de quebrar os padrões naquela parte mais aborrecida do Dia da Marmota.