F80 (8): Quinito
Foi como jogador um espelho daquilo que veio a ser como técnico: marcante, apaixonado e incapaz de renegar aquilo em que acreditava. Quinito foi sempre tudo menos banal.
Quinito está no imaginário de todos os que gostam de futebol sobretudo por causa do que nos deixou como treinador. Apaixonado pelo jogo, mas também pela vida, nunca renegou as suas convicções, antes se deixando envolver em momentos e tiradas que as eternizam. Mas o treinador que um dia foi de smoking branco e laçarote preto para o banco, numa final da Taça de Portugal, no Estádio Nacional, ou que proclamou máximas como “máxima liberdade, máxima responsabilidade”, também foi jogador. Era um médio técnico e lutador, figura no Belenenses e no Racing Santander, de Espanha, antes de preferir pendurar as botas, aos 31 anos, no SC Braga, em vez de deixar o ocaso tomar-lhe conta de uma carreira que tinha sido bem viva.
Natural de Setúbal, Joaquim Lucas Duro de Jesus começou a jogar futebol no Comércio e Indústria, um dos clubes da cidade banhada pelo Sado. Ao mesmo tempo, jogava andebol nos Sadinos. E estudava. Não abdicou de nenhuma das atividades quando, tendo-se destacado nos pelados em que jogavam as equipas de futebol de formação na altura, foi recrutado pelo Vitória FC, que passou a representar nos juniores. E chegou a acontecer-lhe defender no mesmo dia as cores do Vitória no futebol e dos Sadinos – por vezes contra o próprio Vitória – no andebol. O problema foi quando os estudos se intrometeram: em 1967, Quinito conseguiu entrada na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Como adolescente, o sonho dele era ser toureiro, mas médico também não estava mal, pelo que ponderou deixar o futebol de parte e mudou de cidade.
Em Coimbra, entre a agitada vida académica a que um “bom-vivant” como o jovem Quinito não conseguia (nem queria...) fugir, lá arranjou tempo para ir prestar provas à Académica. Agradou e desde logo Mário Wilson o chamou a treinar com o plantel principal, na altura repleto de vedetas, ou não tivesse acabado o campeonato anterior em segundo lugar, apenas atrás do Benfica de Eusébio, e perdido a Taça de Portugal na final, no caso frente ao Vitória FC. Não era fácil a Quinito encontrar espaço naquele onze, mas ainda assim a estreia não demorou muito. Toni sofreu uma lesão que o manteve de fora por quase três meses num jogo com o Barreirense e, na véspera de Natal de 1967, Wilson apostou em Quinito para a visita ao Benfica. Alinhou na direita do meio-campo, a Académica perdeu (3-1) e na partida seguinte o jovem de 19 anos voltou a ceder a vez a outro colega. Nessa primeira época, Quinito só fez mais um jogo, a vitória em casa frente à Sanjoanense (3-0), em Fevereiro.
A segunda época em Coimbra teve mais jogos para o setubalense. Foram seis, com destaque para quatro titularidades seguidas, entre Março e Abril, no lote se integrando uma vitória por 1-0 contra o FC Porto nas Antas. O empate com o Belenenses no Restelo, a 20 de Abril, no qual foi substituído ao intervalo, acabou por ser o último jogo de Quinito com a camisola da Briosa. Já não jogou na fase decisiva da Taça de Portugal, incluindo a final da Taça, perdida com o Benfica, mas o futuro era ali mesmo, de azul, com as cores do Belenenses, onde por essa altura chegara Mário Wilson, o treinador que quisera Quinito na Académica. Ficava para trás a medicina, em favor de uma carreira no futebol.
Quinito começou a época de 1969/70 como titular no Belenenses de Wilson, mas entre Novembro e Abril não pôde dar o seu contributo à equipa. Os azuis foram apenas sétimos no campeonato, mas ainda chegaram às meias-finais da Taça de Portugal, de onde caíram aos pés do Sporting, que acabara de se sagrar campeão. Nessa campanha, Quinito fez o primeiro golo como profissional: marcou-o em Moçambique, nos 6-2 ao Textáfrica, em jogo dos oitavos-de-final. A época seguinte foi mesmo a da sua afirmação. Ao Belenenses chegou outro treinador mítico, no caso Joaquim Meirim, que dele fez pedra base a meio-campo e Quinito só falhou um jogo na caminhada belenense até ao sétimo lugar: a derrota no terreno da CUF, em Novembro, por se ter magoado na semana anterior frente à Académica. Golos é que nem vê-los. Nem no campeonato nem na Taça de Portugal, de que os azuis foram afastados pelo Sporting, nos quartos-de-final, ao fim de três partidas, com desempate no Pina Manique. Até esse jogo teve prolongamento, tendo Quinito sido sacrificado na ponta final, dando espaço a Camolas quando era preciso forçar o ataque e recuperar, após o golo de Marinho que acabou por ser decisivo.
Quinito ficou no Belenenses por mais quatro anos, nesse período se destacando o segundo lugar que os azuis obtiveram com Scopelli em 1973. O primeiro golo no campeonato marcou-o ao Sporting, numa vitória por 2-1, no Restelo, a 31 de Outubro de 1971. Um sucesso muito importante, uma vez que, ao fim de seis jornadas, o Belenenses de Zezé Moreira seguia em último lugar, com apenas dois pontos, e os leões lideravam, com pleno de vitórias. Foi no ano seguinte, porém, que Quinito despontou verdadeiramente. Titular nas 30 jornadas da época do segundo lugar, perdeu apenas 14 minutos de campeonato, quando saiu aos 76’ de uma derrota (0-1) com o Leixões, em Matosinhos. Nessa época fez outro golo, desta vez ao Benfica, num remate do meio da rua, não impedindo ainda assim a eliminação da sua equipa da Taça de Portugal, pois o seu golo fixou o 2-4 final.
Quinito tornara-se fundamental no Belenenses de Scopelli. O argentino chegou ao Restelo em final de Março de 1972 e, até ele ir embora, em Junho de 1974, o médio sadino não falhou um único jogo de campeonato. Participou, de resto, em 75 jornadas consecutivas, entre uma ausência frente ao Tirsense, a 13 de Fevereiro de 1972, ainda com Zezé Moreira, e a seguinte, já com Peres Bandeira aos comandos, numa derrota em Guimarães, a 5 de Outubro de 1974. Pelo meio apareceram-lhe os golos. Já fez cinco no campeonato de 1973/74 e bisou pela primeira vez em Setembro desse ano, num espetacular 6-4 ao Olhanense, no Restelo, em que ficou bem à vista a parceria que fazia com o paraguaio González. E teve ainda direito à estreia europeia, a 26 de Setembro de 1973, numa derrota caseira (0-2) com o Wolverhampton WFC, em desafio da Taça UEFA – que o Belenenses abandonou logo à primeira eliminatória, no entanto.
Seria a conjugação desses dois fatores – golos e brilho internacional – a valer-lhe a saída de Portugal, quando o 25 de Abril trouxe aos jogadores a liberdade para se transferirem. No Verão de 1975, o Belenenses foi, juntamente com o Honved, da Hungria, uma das equipas convidadas para o torneio “veraniego” de Santander, o Troféu Príncipe de Espanha. Os azuis ganharam a competição, empatando a uma bola com os húngaros e ganhando por 4-2 ao Racing Santander, que acabara de festejar a promoção à I Liga espanhola. Quinito marcou no jogo com os espanhóis e ficou desde logo debaixo de olho de Jose Maria Maguregui, o técnico da equipa cantábria. A 4 de Setembro faria o último jogo pelo Belenenses, um empate a zero em casa com o Chernomorets, da então URSS, em amigável de pré-temporada que lhe serviu a ele de despedida e a Artur Jorge de estreia na equipa azul. O futuro de Quinito era em Espanha.
Em Santander, adaptou-se na perfeição ao rigor de uma nova competição, mesmo mantendo os traços de “bon-vivant” que o caraterizavam. “Era o único da equipa que fumava e bebia. Os empregados dos bares foram quem fez o maior esforço para me integrar na sociedade”, reconheceu posteriormente Quinito em entrevista. A verdade é que, dentro do campo, foi sempre capaz de dar resposta à altura, colocando-se sempre entre os mais utilizados de uma equipa que celebrou a manutenção (12º, 15º e 13º lugares) nos três anos que ele lá passou e desceu quando ele optou por regressar a Portugal. No final de 1978, aos 29 anos, Quinito assinou pelo SC Braga de Fernando Caiado. Só se estreou à 11ª jornada, mas ainda contribuiu com 16 partidas para o quarto lugar final, que igualava a melhor classificação dos bracarenses até à data. A época teve ainda uma má notícia: o primeiro cartão vermelho, mostrado por Isidro Santos a 14 de Janeiro de 1969, a deixar o SC Braga reduzido a dez em desafio da Taça de Portugal contra o Marítimo. Os bracarenses acabaram por ganhar (1-0, no prolongamento) e por chegar às meias-finais, de onde caíram aos pés do Boavista. Quinito fez ainda mais uma temporada de chuteiras calçadas, despedindo-se dos relvados a 1 de Junho de 1980 num SC Braga-Rio Ave, curiosamente duas das equipas que viriam a ser mais importantes no futuro dele como treinador. O último golo marcou-o a outra equipa que veio a marcar como técnico: ao SC Espinho, a 20 de Abril. No final da época, ainda com 31 anos, decidiu que não ia jogar mais.
Pensou dedicar-se à suinicultura, com o pai, mas acabou por responder positivamente aos apelos que o futebol lhe lançava e tornou-se um dos treinadores mais marcantes do país nas duas décadas que se seguiram. Lançou-se nos escalões secundários, no FC Famalicão e na UD Lamas, e assumiu o SC Braga, em 1981, aos 32 anos. Logo na primeira época, levou a equipa à final da Taça de Portugal e mostrou a excentricidade, o amor pelo jogo e a vontade de o dignificar, apresentando-se no Jamor de smoking branco. “Traje de gala para uma tarde de gala”, alegou. Os bracarenses não foram capazes de impedir a dobradinha do Sporting de Malcolm Allison, mas Quinito seguiu em frente. Treinou ainda o Rio Ave, o Al Yarmouk (do Kuwait) e o SC Espinho antes de assumir o FC Porto, em 1988, após a saída de Tomislav Ivic. Ali, tentou uma liderança diferente daquela a que o clube estava habituado e não se deu bem: acabou por apresentar a demissão antes do final do ano.
Nunca mais teve a oportunidade de chegar ao topo. Trabalhou como treinador no Marítimo, no Portimonense, na UD Leiria, no Vitória FC, no SC Espinho, no Rio Ave, no Vitória SC, no Belenenses e no Estrela da Amadora. Foi diretor desportivo, apresentador de rádio e chegou a ir com José Couceiro para o Gaziantepspor, da Turquia. Em 2009, abalado com a morte do filho, Gonçalo, num acidente de viação, abandonou de todo o futebol e isolou-se do Mundo, arrasado pela culpa de não o ter visto crescer como qualquer pai banal. A questão é que se há adjetivo que nunca deve ser usado para qualificar a vida de Quinito é “banal”. Porque ele sempre foi especial e diferente.
Este artigo faz parte da série F80, destinada a celebrar o centenário das competições de futebol em Portugal, em 2022. Por aqui passarão biografias de jogadores, sempre em dia de aniversário, e a história de todas as épocas desde esse primeiro Campeonato de Portugal. Os primeiros nove artigos estarão disponíveis no plano gratuito. A partir de 7 de Novembro, para a eles aceder terá de se tornar assinante-pagante.