“Coucou, estou de volta”
O jogo contra a Áustria da pressão constante deu razão a Deschamps: Kanté voltou do ano de exílio na Arábia Saudita em condições de orientar a França pelo meio da confusão de trânsito a meio-campo.
A imagem do nariz de Mbappé esborrachado e ensanguentado, após uma colisão inadvertida com a omoplata de Kevin Danso, surgirá em destaque na galeria do quarto dia de Europeu, ao lado de uma série de instantâneos com a sequência de golos cantados falhados – ou anulados – de Romelu Lukaku, mas o homem da jornada foi outro. O homem da jornada não estará em nenhuma fotografia por uma razão bem simples: tinha sempre mais o que fazer, no seu afã de descongestionar zonas super-concorridas, com licença, deixem passar que a minha vida não é isto. Da França que Didier Deschamps traz a este Europeu como principal candidata ao troféu, já se sabia que tem uma enorme capacidade de desequilíbrio na frente, graças á velocidade de Mbappé, aos dribles de Dembelé, à objetividade de Thuram. Já se sabia também que atrás era forte, porque tem vários defesas-centrais fisicamente imponentes mas que nem por isso menos válidos quando é preciso sair a jogar. Do que se duvidava mais era da capacidade para unir as pontas, dependente de uma prova de vida a dar pelo meio-campo. Rabiot nunca foi propriamente um topo de gama e N’Golo Kanté abraçara a reforma dourada no Al Ittihad, quinto classificado da Liga saudita, depois de uma época a jogar poucas vezes no Chelsea. Clamava-se pelo render da guarda, pela ascensão de Camavinga e Tchouameni, dois craques do Real Madrid, ou pela promoção de Fofana, mas Deschamps decidiu ir com os de sempre. E eles responderam. O L’Équipe de hoje destaca a ação tática dos dois médios no 1-0 suado e sofrido contra a Áustria e mostra mesmo os locais das 16 recuperações de bola que os dois protagonizaram, com destaque para a ação de Kanté, que assinou dez. O último jogo de nível elevado de exigência de Kanté já fizera mais de um ano: tinha sido nos quartos-de-final da Liga dos Campeões, ainda no Chelsea, em Abril de 2023. Na seleção francesa, antes de Deschamps lhe ter dado a titularidade nos dois particulares de Junho, a deixar antever que contava com ele para a fase final, não jogava desde Junho de 2022, aquando de uma derrota com a Dinamarca a contar para a Liga das Nações. E, no entanto, num desafio exigente como poucos para os médios, por força da pressão e verticalidade permanentes da equipa austríaca, Kanté apareceu como se soubesse de cor todos os cantos da casa, como se se movimentasse pelo campo de olhos vendados por lhe ter memorizado a geografia. A exibição de Kanté pode ser utilizada pelos defensores da Liga saudita para argumentar que ali se joga um futebol de um nível de exigência semelhante ao que se pratica nos principais campeonatos da Europa, da mesma forma que a incapacidade de Mitrovic ou Milinkovic-Savic se imporem à Inglaterra pode ter sido usada como forma de mostrar o contrário, que não, que na Arábia eles só são tão decisivos porque lá se joga a passo. Francamente, acho que não é uma coisa nem a outra. A exibição de Kanté contra a Áustria, o que mostra, é a reativação do GPS de um dos melhores médios que o futebol europeu viu nos últimos anos. E que se ele não der erro de sistema nas próximas semanas, a França tem aqui mais um argumento a justificar a candidatura ao título, mesmo depois de um jogo que ganhou com alguma fortuma, à conta de um autogolo infeliz de Wöber.
Anda tudo à nora. Nunca, em mais de 30 anos de carreira, vi tanta incerteza na comunicação social acerca da estreia de Portugal numa grande competição. Olha-se para os onzes que os jornais preveem para o jogo de hoje, com a Chéquia, (20h, SIC e Sport TV1), e não há dois que repitam a fotografia. Nem o sistema tático é consensual, se é com linha de quatro ou linha de três atrás. Isto não é necessariamente prova de indecisão do selecionador, que até acho que ele já desenhou o plano para os três jogos da primeira fase antes do início do estágio e que pretende abordar cada um de uma forma diferente e específica. A riqueza do plantel permite-lhe essa veleidade, de achar que pode fazer a fase de grupos com variações táticas e 16 ou 17 titulares – e não é por duvidar de quem são os melhores ou de achar que tem de poupar jogadores, mas simplesmente por pretender acionar armas diferentes e de forma diferente contra adversários que são em si diferentes. Para hoje, sem correr risco de me enganar, só sou capaz de arriscar cinco titulares: Diogo Costa, Rúben Dias, Bruno Fernandes, Bernardo Silva e Cristiano Ronaldo. O resto? Depende. Se é a melhor maneira de fazer as coisas? Não é uma forma à qual ache muita graça, tratando-se de uma seleção nacional, que não tem o modelo tão bem trabalhado como um clube, por manifesta falta de tempo. É um bocadinho como estar a aprender a andar de bicicleta e querer fazê-lo já sem as mãos no guiador. Mas falamos mais logo...
Um italiano “tedesco”. Domenico Tedesco, o selecionador da Bélgica, tem nome italiano, que lhe vem das origens em Rossano, ali a caminho do tacão da bota da península itálica, frente ao Mar Jónico, e engrossa o continente de treinadores italianos neste Europeu, mas é alemão de passaporte, porque se mudou com os pais para Esslingen aos dois anos de idade. E o jogo de ontem, que a Bélgica contra a Eslováquia, mostrou-o a pensar como um alemão, preferindo o método ao improviso quase até ao final, já abordado em desespero – que deve ser quando até os alemães inventam um poucochinho. A Bélgica entrou no 4x2x3x1 de sempre, com Doku – sempre inconsistente na decisão – e Trossard – desastrado – nas alas de um ataque que era entregue, ao meio, a Lukaku. De Bruyne tinha a missão de mexer com o jogo ao meio, à frente do duplo pivot de médios formado por Mangala e Onana. A coisa podia ter corrido bem. Aliás, devia ter corrido bem, se Lukaku acertasse na baliza nos lances que não lhe foram anulados, coisa que ele teimou em não fazer, como que prolongando a agonia concretizadora que já lhe vinha do Mundial do Qatar, onde foi o réu da eliminação logo na fase de grupos. Mas o golo de Schranz, logo a abrir, depois de uma asneira de Doku – passe interior para a área em momento de pressão adversária – abriu uma caixa dos pesadelos da qual os belgas nunca conseguiram sair. Francesco Calzona, outro treinador italiano bem marcado pelo metodismo, apostou tudo no encaixe perfeito a meio-campo: Lobotka e o apertar das duas linhas tiravam influência a De Bruyne, Duda e Kucka caíam em cima do duplo pivot belga. A Bélgica levou uma eternidade a desencaixar, a tirar De Bruyne do seu colete de forças, a mudar o jogo dos seus extremos, chamando outros, igualmente fortes, ao relvado. Podia ter ganho na mesma? Sim. Devia, até. Mas não era dia.
O SuperMan. É um pássaro? É um avião? Não, é o Super Man. O Super Denis Man. O extremo do Parma foi a grande figura do primeiro jogo de ontem, um jogo em que uma Roménia muito recolhida superou uma Ucrânia da qual se esperava mais, a começar pela baliza, onde Lunin, a mais inesperada estrela da campanha do Real Madrid na Champions, comprometeu nos dois primeiros golos. O 3-0 final, com duas assistências de SuperMan e duas bombas de Dragus e Razvan Marin a abrirem o ativo, deu a primeira vitória conclusiva deste Europeu a uma ideia de defesa porfiada e contra-ataque. Até ontem, ninguém se tinha imposto assim. Ontem, isso aconteceu por duas vezes. E se no caso da Eslováquia houve alguma sorte misturada com aselhice alheia, na vitória da Roménia sobre a Ucrânia houve sobretudo controlo. Absoluto e total sobre as armas dos adversários. O futebol especulativo não morreu, mas precisa de ter gente capaz de o levar com qualidade até à baliza adversária. E nisso Man foi extraordinário.
Entrelinhas
Du neuf chez CR7, análise tática de Cédric Chapuis, no L’Équipe, mostra a diferença nas ações de Cristiano Ronaldo antes e depois da chegada de Martínez à seleção de Portugal.
Ronaldo’s retreat, é um artigo de Andy Brassell, no The Guardian, acerca da influência de Cristiano Ronaldo no dia-a-dia da seleção de Portugal.
Caucase à part, por François Verdenet, no L’Équipe, é uma reportagem sobre a estreia da Geórgia na competição, liderada pelo francês Willy Sagnol.
Los goles de la disidencia contra el gobierno de Georgia, artigo de Miguel A. Herguedas, no El Mundo, explica o envolvimento de vários internacionais georgianos nas ações de protesto político.
Turkish diaspora welcomes heros to ‘home’ Euros, por Kate Connolly, no The Guardian, é uma viagem à comunidade turca que aguarda ansiosamente a estreia da sua seleção no Europeu.
Fútbol bajo redes de camuflaje em Ucrania, de Cristian Segura, no El País, é uma reportagem em Novomikolaivka, com soldados ucranianos, durante a estreia da seleção no Europeu.
How Slovakia channelled Napoli to record the ‘biggest-ever’ Euros upset, análise tática de Liam Tharme, no The Athletic, à vitória da Eslováquia sobre a Bélgica.
Endrick, Yamal and Paez: how do you manage children at major international tournaments, um trabalho de Stuart James, Jack Lang e Pol Ballús, no The Athletic, centra-se nos problemas colocados pelo facto de se convocarem crianças para estas competições.
Blossoming ‘bromances’ show club cliques are gone, é um artigo de Matt Law, no Telegraph, sobre os fortes relacionamentos pessoais entre alguns dos jogadores da seleção inglesa.