O coração de Amorim
Ruben Amorim, que há uns meses afirmou à BBC que o Benfica é o clube dele, disse ontem à Sport TV que amanhã estará a torcer pelo Sporting. Sim, por muito que vos surpreenda, isto é possível.

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A quase generalidade das antigas civilizações mesoamericanas tinha um “jogo da bola”. Como o tinham muitas culturas europeias desde o período medieval. Não há certezas acerca das razões que levaram os antecessores dos Mayas ou dos Aztecas a inventar esse jogo nem das regras que ele assumia em cada um dos casos, que algumas versões permitiam que se usasse tudo menos pés e mãos, mas admite-se que ele fosse um substituto para a guerra, definindo submissões de umas tribos a outras sem haver (tanto) derramamento de sangue. Está-nos na natureza, este confronto desafiador com o estandarte adversário evidenciado, por exemplo, nas inúmeras anormalidades que se vão cometendo nestes dias que antecedem – e esperemos que não se repitam no rescaldo – um dérbi decisivo como o que se jogará amanhã. Ao pé disso, das estátuas e murais danificados com tinta, dos cânticos ofensivos, das agressões físicas, da mobilização preventiva de forças de segurança que nos custará dinheiro a todos, a exploração e a agitação dos sentimentos de Ruben Amorim como se eles valessem pontos parece uma brincadeira quase pueril, sem o mínimo significado. E, se é verdade que devia inquietar-nos a todos que ela seja feita – se ela é feita é porque é isso que queremos enquanto sociedade –, ao mesmo tempo pode ser que isso esteja para o drama verdadeiro como estava o Jogo da Bola para os Mayas. E que se a coisa ficar apenas por aqui se evite o derramamento de sangue que a guerra a sério podia provocar.
Aqui chegados, admito que alguns de vós precisem de contexto. Não tanto de saber que vai jogar-se amanhã um Benfica-Sporting que definirá, mesmo que não ainda matematicamente, o campeão nacional de 2025. Ganhando, o Sporting é logo campeão. Vencendo por mais de um golo de diferença, o Benfica também é desde logo campeão. Empatando, aos Leões restará fazer na última jornada, em casa com o Vitória SC, pelo menos os mesmos pontos que fará o Benfica na visita ao SC Braga. Ganhando por um golo, as Águias terão a necessidade de sacar ao menos um ponto em Braga, para se prevenirem ante a hipótese de o Sporting ganhar ao Vitória SC. Mas isto já toda a gente que está interessada na definição do campeão nacional saberá. Tal como sabem de histórias de rivalidade, das mais ou menos inconsequentes às mais graves, que ciclicamente levam a agressões físicas ou a mortes, e às perfeitamente anormais, que envolvem cânticos a glorificar os assassinatos. Ainda esta semana, logo após o final do Benfica-Sporting em voleibol, houve uns quantos idiotas que começaram a cantar o infame “Foi no Jamor”, em alusão à morte do adepto sportinguista atingido por um very-light lançado da bancada oposta, na final da Taça de Portugal de 1996.
Não me interessa nada saber quem é que começou, porque vai-se a ver e a origem está num qualquer jogo da bola do tempo dos Mayas. Mas gostava que acabasse. Que todos os que andam à volta do fenómeno do futebol fossem humanos, de maneira a evitar que o dia de amanhã, um dos mais emocionantes de que me lembro na história da Liga, venha a ser mais tarde recordado pelas razões erradas. E é aqui que entra a parte do contexto de que talvez nem todos estejam a par. Ontem, depois de se ter apurado para a final da Liga Europa com o Manchester United, ganhando por 4-1 ao Athletic Bilbau, Ruben Amorim respondeu a uma pergunta que estranhamente interessa a muitos portugueses – e por isso mesmo foi colocada pelo jornalista da Sport TV. “Por quem é que vai estar a torcer no sábado?”. Ora Amorim, benfiquista doente dos tempos de infância, campeão pelos Encarnados como jogador, ganhou depois duas Ligas pelo Sporting como treinador, já com uma boa parte destes jogadores no plantel, e começou a época em Alvalade, vencendo as primeiras onze jornadas da competição que amanhã se decide – o que no limite até faria dele campeão também, pois ainda somou 33 dos 78 pontos que os Leões têm. Que Amorim prevalecerá? O do primeiro amor, porque o clubismo é tão irracional como a paixão? Ou o das experiências mais recentes, dos amigos e até da possibilidade de engrossar o próprio palmarés? E, questão do milhão de euros, porque é que isso nos interessa?
Por um lado, ainda bem que interessa, porque enquanto andarem a esfregar na cara dos rivais que um dos deles está do outro lado – e isto serve para os dois clubes –, os mais radicalizados de entre vós não estarão a fazer parvoíces. Aqui há tempos, quando, em entrevista à BBC, Amorim se referiu ao Benfica como aquele que ainda era o clube dele, foram os benfiquistas a rejubilar e a agitar isso como se de uma bandeira se tratasse. Então o homem aproveitou logo uma das primeiras oportunidades depois de se livrar do verde-e-branco para afirmar a fidelidade ao encarnado? Agora, que Amorim respondeu que torce pela vitória do Sporting e que nem é por uma questão de isso lhe permitir juntar um título ao lote das suas conquistas – “O campeão é o Rui Borges”, disse ele claramente –, são os sportinguistas que encaram esta manifestação de fidelidade como mais uma vitória. Enfim, alguns sportinguistas, pelo menos, porque há os que ainda não lhe perdoaram o facto de ter saído e que, por uma fração de segundo, podem até considerar a hipótese de que perder não seria assim tão mau, porque ao menos contrariava Amorim. Tal como do outro lado terá havido quem, ao ouvir a jura de amor recente, lhe tenha dirigido impropérios, por ele ter sido tão importante na ascensão recente do rival. Mas, no fundo, aqueles (poucos) de vós que ainda não estão convencidos, que ainda andam a entoar cânticos ofensivos para o adversário, a meter-se em bulhas de consequências imprevisíveis e a dar tudo para deixar as vossas marcas no território contrário, podem ter a certeza de uma coisa: isso é algo que só vos interessa a vocês.
Quem anda no futebol, encara-o com a seriedade de um profissional e com as solidariedades estabelecidas com quem teve a seu lado a funcionarem como fator de desequilíbrio para um ou outro campo. O César Peixoto, hoje um dos adversários mais abominados em Alvalade, por ter sido apanhado pelas câmaras de televisão a desejar a Bruno Lage que ele seja campeão, depois de um jogo entre o Gil Vicente e o Benfica, certamente não me levará a mal que aqui revele que, em 2020/21, quando fez a ponta final da época integrado na equipa da RTP e viu muitos jogos comigo, ao sábado à noite, era adepto do sucesso do Sporting, provavelmente porque lá estava Ruben Amorim, com quem ele partilhara balneário na Luz e com quem tinha depois feito o curso de treinador. As mesmas razões são válidas para Amorim, que tem em Alvalade o staff alargado que não seguiu com ele para Manchester, bem como jogadores com quem passou muitas horas em campo e fora dele durante os últimos anos. Mas, por mais que queiram transformar estes jogos florais na “guerra sem lágrimas” descrita por Peter Gabriel no “Games Without Frontiers”, os jogos não se ganham nem perdem aí nem no roubar das bandeiras rivais a que equivalem a danificação da propriedade ou a agressão a adeptos dos adversários. É no campo que tudo se decidirá.
E, acreditem, Amorim está muito mais preocupado com a final da Liga Europa que vai jogar com o Tottenham e que, mais do que definir se esta época é um sucesso ou fracasso, dirá como é que ele vai entrar na próxima, onde já vai ser julgado, do que com o dérbi de amanhã. Mesmo que em campo esteja o clube dele contra os amigos que fez do outro lado.
PS – Fiz esta semana um esforço adicional para ter artigos-extra relacionados com o dérbi de amanhã. Escrevi um sobre as histórias de todos os dérbis que, na segunda volta, acabaram por ser decisivos para definir, entre os dois rivais de Lisboa, qual seria o vencedor da Liga (há link aqui). Outro sobre os dados estatísticos de Benfica e Sporting esta época, para tentar entender o que é que as duas equipas têm em comum e o que as separa (e também há link aqui). E ainda mais um acerca das cambiantes táticas e estratégicas de que pode revestir-se o jogo de amanhã e das razões que podem levar os treinadores a escolher uns jogadores em detrimento de outros (link aqui). Em função desse esforço, aligeirei um pouco a pressão em torno do Futebol de Verdade. Tinha um convidado apalavrado, mas sem ter combinado todos os detalhes com ele. E quando, ontem, tratei de o fazer, esbarrámos na indisponibilidade dele para o direto ou para gravar nos horários disponíveis. Sem convidado, decidi cancelar o Futebol de Verdade desta semana. A falha foi, evidentemente, minha, e por ela me penitencio. Espero, ao menos, que aproveitem os artigos-extra para se sentirem compensados.
Quem seria essse convidado com tanta falta de tempo para participar no direto ou gravado 🤔🤔⚽⚽ (está desculpado oh Fernando) Bom jogo para os interessados no combate de amanhã